27/02/2008 - 10:00
Há alguma coisa em Letícia Sabatella que sugere a rara combinação entre sabedoria e fé. Quando defende uma posição política, a atriz é quase inflexível, embora nunca arrogante, e pode beirar o niilismo sem perder a esperança. Seu ideal é romântico: quer um mundo totalmente justo. Sua prática é moderna: tal e qual uma Angelina Jolie que obriga a imprensa mundial a falar sobre sua causa, as crianças em situação de risco, Letícia também usa a mídia para dar visibilidade a movimentos sociais. Viveu entre índios, caminhou com os semterra e foi ao sertão apoiar o bispo dom Luís Cappio, que fez greve de fome contra a transposição das águas do rio São Francisco. Acabou em todas as revistas, jornais, tevês e sites batendo boca com o deputado Ciro Gomes (PSB-CE), que tem opinião contrária sobre o projeto das águas. Como escreveu o jornalista Elio Gaspari, é irrelevante concordar com suas opiniões para apreciar as suas atitudes. “Vive-se melhor enquanto hou- ver gente disposta a ir ao Nordeste ou à praça do bairro para sustentar aquilo em que acredita”, disse ele. Linda aos 36 anos, a mineira que escolheu morar no Rio leva uma vida discreta. É mãe em tempo integral da adolescente Clara, da união com o ex-marido Ângelo Antônio, e namora o também ator Miguel Lunardi. Atualmente, protagoniza a novela Desejo proibido, da Globo, e estréia como cineasta com o documentário Os palhaços sagrados da tribo krahô. Nesta entrevista à ISTOÉ, ela se mostra decepcionada com Lula (a quem, no momento, não daria seu voto de novo) e, ao relativizar as contradições com Ciro Gomes, solta um desconsolado “fazer o quê?” Com imagem de boa moça, poderia aumentar a conta bancária fazendo comerciais, mas ela prefere ganhar menos dinheiro e jamais induzir ao consumo de produtos que desconhece ou, pior, não aprova. Atitudes como essa fizeram com que se sentisse “de outro planeta”.
Durante o debate (no Senado), e mesmo na carta aberta que ele me enviou e eu respondi (ambas publicadas no jornal O Globo), não aceitei um tom pessoal para a discussão. Mas nessa discussão e, principalmente, dentro do ritual de um debate no Senado Federal, tenho claro o que ele ali representava. Assim como eu também não estava ali posando de celebridade. Eu era uma cidadã, representando um movimento de direitos humanos, e ele, um deputado defendendo um projeto, introduzido por ele quando ministro da Integração. Nós, do Movimento Humanos Direitos, defendemos, junto com outros movimentos sociais, os projetos alternativos que democratizam a distribuição e o uso da água. São posições políticas contrárias, fazer o quê? Pensamos de modo diferente o modelo de desenvolvimento do País, mas, sinceramente, não só não concordo com a forma como ele defende seu projeto como não gostei da forma como Ciro tratou dom Cappio e os movimentos que ele representa. Fosse ele meu irmão, agiria da mesma maneira.
Ainda não terminei de tirar as minhas conclusões. Agi movida por um sentido de urgência, mas já vinha observando uma imobilidade geral em relação às grandes obras do PAC e suas conseqüências ambientais e socioculturais. Observei isso em especial nas minhas visitas às aldeias krahô. Ninguém soube – a não ser as tribos e os movimentos sociais – das reuniões em que vários líderes punham-se contrários ao desmatamento, às monoculturas extensivas e à quantidade de barragens que estão alagando terras indígenas e comunidades ribeirinhas. Entendi o porquê do gesto extremo de dom Cappio. Quando pediram o apoio do MhuD (ONG Movimento humanos Direitos), eu me prontifiquei a ir visitá-lo.
Para ouvir o que ele queria dizer. Ele precisava ser escutado. Estava pondo sua vida em jogo para que todos soubessem o que estava acontecendo. O Exército iniciara as obras para a transposição antes que uma profunda análise e amplos debates envolvendo a população fossem feitos para que se soubesse qual deveria ser o melhor projeto para o semi-árido. Isso não aconteceu como deveria e a transposição foi imposta como a única e melhor solução. A greve de fome que ele fez foi o que provocou uma maior mobilização e culminou com o debate no Senado. Acredito que a transposição, por mais monumental que seja, é a ponta de um iceberg e creio que o debate sobre qual modelo de desenvolvimento queremos para nosso país deve continuar.
A última vez que o vi foi no Senado, em Brasília. Fico feliz porque ele está vivo e continuando sua missão ainda mais forte. Ninguém sai de um jejum de 23dias sem estar mais fortalecido espiritualmente. É um ritual muito poderoso de determinação e aprofundamento.
Não, nem…
Quando me envolvo com uma causa cidadã, me uno a grupos com os quais partilho da mesma filosofia. Nunca defendi, ainda, nada sozinha. Uno-me aos cidadãos, aos movimentos que precisam de apoio. Sei que o nome de artistas, intelectuais, reforça na mídia a causa dos pobres. Hoje em dia dou este apoio através do MhuD.
Há 18 anos, me mudei para o Rio para fazer meu primeiro trabalho em televisão. Na mesma época, conheci o Betinho (sociólogo Herbert de Souza). Isso aconteceu quando eu quis fazer alguma coisa para ajudar as crianças de rua que ficavam na porta da Globo, no Jardim Botânico. Ficava incomodada vendo-as vender balas. Meu trabalho me abriu tantas portas e eu pensava em oferecer uma contrapartida, quem sabe algum trabalho ligado à arte? Ainda ajo assim, de várias formas procuro contribuir para uma sociedade mais justa. Não esperava reconhecimento. Tenho condições de oferecer, não quero cuidar só de mim e da minha família. Nunca sofri preconceito por fazer isso. Acho que apostaram em mim como atriz, me deram oportunidades boas demais para falar a verdade. Talvez eu incomode alguém por fazer isso, mas recebo muito mais carinho e muito mais apoio – e ajudo a transferir este carinho a quem está mais distante, necessitando ser ouvido.
Eu procuro respeitar o tempo e a consciência de cada um. Já me senti pressionada a fazer comerciais, por exemplo, e foi difícil assumir a decisão que a minha consciência me exigia (não anunciar produtos comerciais), a despeito do que todos diziam a minha volta. Eu parecia mesmo ser uma criatura de outro planeta, mas tive este insight, como se tivesse uma velinha acesa na minha consciência, delicada luz. Cada um tem a sua luzinha, a sua consciência, e tem de prestar contas a si mesmo, inevitavelmente. Nesse aspecto, todos somos sozinhos. Não sei se faltam ideais, porque eu convivo com pessoas com fortes ideais – outras, à sua maneira, fazem trajetórias distintas. Respeito, não fico julgando.
Acho que sim. Fico em paz com isso.
A resposta é complexa. Não deixo de ter esperança, é o que resta literalmente. Todos são passíveis de erros e acertos e, mesmo com boas intenções, somos capazes de ceder a pressões. A gente sabe da pressão que o poder econômico impõe ao Estado – e todos os governos se deparam com uma dificuldade gigantesca para mudar o quadro social brasileiro. Os avanços têm sido lentos, não que não existam. Neste governo, houve avanços. O que assusta é quando soa o alarme de um possível retrocesso, pois o preço é muito alto. Não tínhamos muita certeza do que seria o Lula e o PT governando este país, mas era o caminho mais sólido para uma transformação. O que sei é que é extremamente necessário e legítimo que haja pressão da sociedade civil para mudar o foco de interesse do Estado. Sempre foi assim: depende do Lula, do governo e do povo brasileiro.
Neste momento, não posso dizer que votaria.
O PT, quando era um partido de oposição, era uma ponte forjada pelos movimentos populares, seu quadro era composto por pessoas importantes na história da construção de uma democracia. Mestres intelectuais prestavam assessoria através dos movimentos sociais. Enquanto os movimentos tiveram este respeito – e nunca é tarde para recuperar –, víamos o PT cumprindo sua missão histórica.
Sou capaz de comer carne ou peixe hoje em dia, de beber um pouco também, mas não gostaria de ficar sempre dependente e ter de comer carne todos os dias. Acho pesada a indústria da carne, a monocultura da soja ou o modo como tratam a natureza e os animais.
Nunca fiz cirurgia plástica, nunca fiz nenhuma cirurgia, graças a Deus. Prefiro deixar aberta a possibilidade de usar algum recurso como o botox. Mas quero preservar minhas expressões, sou uma atriz, nada de exageros.
Ginástica, caminhadas e, às vezes, nada… Alimentação legal, aqui em casa não entram mais agrotóxicos. Uso protetor solar e hidratante nos cabelos.
Eu e o Miguel Lunardi estamos namorando há dois anos e meio, ele é um anjo. É inteligente, superamigo, carinhoso, adora conversar, é gentil e discreto, um cavalheiro. Eu o amo.
A Clara é uma pessoa linda, linda, linda. Tem uma observação, autêntica e personalíssima, sobre os acontecimentos. Acompanhar o seu desabrochar é, para mim, uma honra e um privilégio. Não gostaria de perder isso por nada neste mundo. É minha melhor amiga em todos os momentos. Temos brigas, claro. E acho até saudável. O Miguel, que estuda muito psicanálise, quando assiste, vez ou outra, a alguma discussão entre nós duas, fica admirado com a inteligência e a postura que ela está desenvolvendo.
O Rio é lindo, as pessoas daqui são maravilhosas. Vim para cá pelo meu trabalho e fiz amigos queridos aqui. Todos sofremos com a violência, gerada pela desigualdade social. Aqui, ficou mais claro para mim quanto a reforma agrária e uma melhor distribuição de bens, de água inclusive, são urgentemente necessárias.