Em 11 dias de greve de fome encerrada na quinta-feira 6, um franzino bispo franciscano, chamado Luiz Flávio Cappio, transformou-se numa espécie de Mahatma Gandhi do Nordeste brasileiro: sua rebeldia pacifista encurralou o governo. Conhecedor profundo do povo e das questões sociais que transbordam ao longo dos 2.700 quilômetros por onde serpenteia o Velho Chico, o bispo de Barra, no interior da Bahia, exigia a paralisação do início das obras de transposição do rio.

Integrante da ala progressista da Igreja Católica, mítico e carismático, frei Luiz conseguiu atrair multidões de fiéis à capelinha da Fazenda Bela Vista, a quatro quilômetros de Cabrobó, na divisa entre Pernambuco e Bahia, escolhida como ponto de partida de um canteiro de obras, onde o governo pretende investir cerca de R$ 4,5 bilhões para tornar viável um projeto que seria a maior obra da administração Lula e cuja execução é tema recorrente desde os tempos do Império.

“O Lula se rendeu aos interesses da elite econômica”, disse o bispo, que é também um antigo amigo do presidente. Nas eleições, quando o PT pregava a revitalização do São Francisco antes da transposição e priorizava os pobres na distribuição da água, frei Luiz sempre fez intensa campanha pela eleição do petista. Em 1994, na chamada “Caravana da Cidadania”, o candidato deslocou-se até o interior da Bahia para encontrar o frade. Desta vez, utilizando a desobediência civil como arma, ele obrigou o ministro Jacques Wagner a se deslocar até Cabrobó para negociar. E frei Luiz venceu. Só suspendeu sua greve depois que Wagner, com uma carta de Lula em punho, aceitou uma pauta de reivindicações que, na verdade, suspende por tempo indeterminado o início das obras. Os principais compromissos assumidos pelo governo são agora a revitalização do São Francisco, um amplo debate antes do início das obras e investimentos da ordem de R$ 6 bilhões durante 20 anos para recuperar os trechos degradados ao longo do seu atual leito.

Foi uma ducha de água fria nos planos do governo. Soldados do Exército já haviam iniciado levantamentos topográficos, exatamente no local previsto para o início de um dos canais. O trabalho foi documentado pelo MP e encaminhado à Procuradoria da República, em Brasília, para uma ação contra o governo por iniciar a obra, quando existia apenas a concessão de licenças para a futura execução do projeto. A juíza federal da Bahia Cíntia Araújo Lopes, em liminar, também determinou que o governo suspenda qualquer iniciativa que implique o início físico das obras.

Se não voltasse atrás, Lula corria o risco de ser responsabilizado pela morte de uma figura que vem ocupando, entre o povo humilde e religioso, o vácuo deixado por líderes carismáticos como padre Cícero e frei Damião. À esquerda dos dois, frei Luiz faz parte de uma linhagem de religiosos que, de tempos em tempos, surge no Nordeste. “Ele mexeu com a emoção e a religiosidade do povo”, reconhece o pároco de Cabrobó, Nicolau Klak. As entidades organizadas e os políticos da cidade defendem com unhas e dentes o projeto – o que acabou motivando o bispo a escolher o local como trincheira para fazer o contraponto.

O frei, de 59 anos, une a força intelectual a uma profunda relação com a população humilde. Entre outubro de 1992 e outubro de 1993, caminhou pelas duas margens do rio e, no final, colocou sua experiência num livro – Rio São Francisco caminha entre vida e morte, da Editora Vozes. Formado em economia, estudou e conhece em detalhes as especificações técnicas do projeto, o que o torna um preparado adversário do projeto do governo.