05/10/2005 - 10:00
Aos 28 anos de idade, o gaúcho Gustavo Ioschpe nunca teve o que reclamar da educação que recebeu, mas sabe que, no Brasil, é uma exceção. De família rica, estudou nas melhores escolas do País e graduou-se no Exterior. Ao aprofundar seus estudos sobre educação, percebeu que havia uma lacuna na relação entre desenvolvimento econômico e ensino. Ao final de dois anos de trabalho intenso sobre o tema, nasceu o livro vencedor do Prêmio Jabuti 2005, A ignorância custa um mundo, publicado pela Editora Francis. É a visão de um economista sobre o sistema educacional brasileiro. Com a nova abordagem, espera arejar as discussões sobre políticas públicas de desenvolvimento. Munido de números e estatísticas, Ioschpe afirma que a educação brasileira é muito ruim e alerta que “estamos perdendo o bonde da história”. Sem medo de mexer em temas espinhosos, critica os ganhos elevados dos professores universitários, defende a cobrança de mensalidade nas universidades públicas e assegura que a elite intelectual universitária, que se diz de esquerda, defende um sistema educacional que perpetua a desigualdade de renda no País.
Vivemos um momento em que o Brasil está perdendo o bonde da história. O mundo em geral, especialmente os países desenvolvidos, está massificando o ensino universitário, e o Brasil continua tendo uma universidade voltada para a elite. Os países desenvolvidos já estão há décadas com 100% de matrícula no ensino primário e secundário. E só agora o Brasil conseguiu 100% no ensino fundamental, enquanto o ensino médio está em 40%. Abre-se um abismo não só entre o Brasil e os países desenvolvidos, mas também entre outros países subdesenvolvidos, como a China e o Chile, que estão avançando na área educacional. Tem de haver um movimento muito acelerado de recuperação da educação no Brasil. E isso só vai acontecer quando a sociedade brasileira entender a educação como uma variável estratégica para o desenvolvimento e exigir do poder público um ensino de resultado. Já os professores, diretores, as pessoas que pensam a educação, têm um componente ideológico muito forte.
Nas escolas de formação de professores é priorizada a idéia de
criar um cidadão consciente, engajado. Não se formam mais professores
que saibam alfabetizar ou ensinar o aluno a fazer contas. Tenho discussões homéricas com alguns setores da USP. Falo que eles precisam orientar o
professor a ensinar o aluno a ler e escrever. E eles dizem que isso é uma tarefa reducionista, coisa de economista, uma visão neoliberal do mundo e que a
escola é muito mais do que isso.
É um critério subjetivo. Não há como mensurar se uma escola é boa ou ruim, já que não se tem como medir se se está criando um cidadão consciente, participativo e politicamente engajado. E também porque isso impede o desenvolvimento de uma educação voltada para objetivos mensuráveis e técnicos de qualidade. E quando se cobram resultados mensuráveis e qualitativos do ensino, como a melhora no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), incremento da taxa de alfabetização, melhora na taxa de repetência, o refrão é sempre o mesmo: avaliar qualitativamente o ensino é reducionismo, é reduzir o papel da educação a coisas técnicas.
Treinamento e qualificação de professores. Falta qualidade principalmente nos primeiros anos da educação fundamental. O Brasil tem índice de repetência de 32% na primeira série. É mais alto do que no Paraguai (14%) e na Indonésia (11%). Nos países desenvolvidos, esse número é de 3%. Isso significa que na primeira série do ensino fundamental está se condenando um terço da população brasileira ao atraso, à repetência e aos problemas de baixa auto-estima.
Além da ideologização dos professores, há a falta da qualidade do ensino. Para não ser injusto com os professores, temos uma série de deficiências inacreditáveis, como escolas sem diretor, sem lousa, sem biblioteca e até sem carteiras. Outra questão é a perda de tempo com discussões pedagógicas. É Paulo Freire para cá, Piaget (Jean) e Vigotski (Liev) para lá, construtivismo, neoconstrutivismo, construtivismo social… O nosso problema não é pedagógico. Essa discussão só faz sentido em países de Primeiro Mundo. Vamos focar esforços para ensinar nossas crianças a ler e escrever na primeira série. Quando tivermos taxa de repetência de 2% ou 3%, aí sim migramos para questões mais sofisticadas. O problema da educação brasileira é uma questão de alocação de recursos, de implantar métodos certos para os lugares certos.
Muita gente pensa que o problema da falta de aluno no ensino se resolve com mais escolas. No momento em que se colocam todas as crianças nas escolas, como é o nosso caso, o fator determinante passa a ser qualidade do ensino. Se for ruim, o aluno repete. E se ele repetir continuamente e não tiver base de aprendizado, acaba evadindo-se. Ele não sai da escola porque falta vaga, mas porque o ensino é ruim. O quanto ele perde em uma escola ruim em vez de estar trabalhando faz com que a relação custo/benefício seja invertida. E aquilo que deveria ser um investimento passa a ser um fardo. Isso é instintivo. Se o aluno está passando de ano e progredindo é uma coisa; se ele não aprende e repete, então vai para a rua trabalhar.
Na hora de distribuir os recursos, ocorre uma ineficiência brutal, principalmente devido aos altos custos do ensino universitário. Na média, os países em desenvolvimento gastam com um universitário quatro vezes mais do que com um aluno do ensino médio. Nas nações desenvolvidas, essa proporção cai para 1,7 aluno. Já no Brasil, um universitário custa o mesmo que 15 alunos do ensino médio. É desproporcional. O gasto com um universitário público brasileiro é proporcionalmente quatro vezes mais alto do que com um universitário das melhores escolas do mundo. Não é que falte dinheiro; ele é muito mal gasto. Vai uma montanha de dinheiro indevida para subsidiar filhinho de papai na universidade pública. E tem muito desperdício, para não falar em corrupção.
No perfil de renda dos alunos das universidades públicas, uma grande parte poderia pagar. O que prova isso é o hábito das famílias de classe média alta de dar um carro para o filho que ingressa na universidade pública. Não tem confissão maior de que esse aluno não precisa receber o benefício. Como essa elite vai para cursos com boa aceitação no mercado, ela terá um grande aumento de renda privada como fruto dessa educação subsidiada.
Proponho também acabar com o desconto do Imposto de Renda com gastos em educação. O que acontece de fato é o financiamento do ensino privado com dinheiro público. Não tenho nada contra o Estado pagar a educação de seu povo, pelo contrário, mas não vamos fazer dois sistemas educacionais, um sem qualidade e outro com qualidade.
Não. Mercantilização do ensino é um discurso pseudo-esquerdista.
Temos um ensino que atende uma pequena elite e confere a essa elite os mecanismos para que ela perpetue a sua dominação e a desigualdade de renda. Cobrar mensalidade não é privatizar a educação. De qualquer jeito, a sociedade já está pagando pelo ensino das pessoas. É melhor que quem possa pague, e não que a sociedade inteira arque com os custos. Não há universidade gratuita.
Porque as pessoas que recebem este benefício são as que têm poder político, econômico e voz para reclamar. Na pesquisa para o livro, descobri um dado que me deixou estarrecido. O principal fator que explica a desigualdade é justamente a educação. Ao invés de diminuir o fosso, a educação no Brasil aumenta a desigualdade, respondendo sozinha por 50% da diferença de renda no País. É chocante. Nos outros países, à medida que o sistema educacional é ampliado, como na Coréia do Sul, a desigualdade diminui. Aqui foi o contrário. Nisso, a questão universitária é um nó muito importante.
Não tem nada a ver com a realidade brasileira. É uma política caudatária do Affirmative Act americano. Só que nos EUA a população negra corresponde a 12%, enquanto no Brasil os negros e pardos são 50%. Então, o que nos EUA é uma coisa praticamente irrelevante, aqui abarca um número muito grande da população. Os negros não estão fora da faculdade porque são negros, por causa de um sistema educacional racista, mas porque são pobres. O sistema educacional brasileiro coloca os pobres para escanteio. O problema é de inclusão de classes.
E esse tipo de regime especial de benefício às minorias só faz sentido no momento em que o País já tenha atingido um desenvolvimento em que ele pode prescindir das suas melhores cabeças. Temos de ter um sistema de meritocracia: se as vagas são tão poucas, que sejam para os melhores. Se melhorássemos a educação básica das pessoas menos qualificadas, elas poderiam chegar à universidade pelos próprios méritos.
O sistema universitário já foi privatizado, graças à própria inoperância e ao gasto absurdo das universidades públicas. Enquanto houver essa estrutura de custos na universidade pública, ela vai continuar sendo uma universidade de elite.
A universidade pública não é um bem público, pois privilegia uma elite e gera uma desigualdade de renda. Eu me considero uma
pessoa de esquerda, mas, quando falo em
cobrança de mensalidade e outras propostas,
dizem que é coisa da direita.
Na área de educação, o que é de esquerda, na verdade, é de direita e o que é de direita, na verdade, é de esquerda. Ou seja, a elite intelectual de esquerda defende programa educacional que é concentracionista, elitizante e que privilegia o aumento da desigualdade de renda. As pessoas fazem de conta que não há uma ligação entre dinheiro gasto em uma universidade e dinheiro gasto no ensino básico. Mas recurso público é um só, vem todo dos impostos. Historicamente, seja qual for a tendência ideológica, governos privilegiam os níveis educacionais que favorecem a elite (a universidade pública), já que é onde está o poder político e econômico. Por isso, a solução da questão educacional tem de ser uma iniciativa da sociedade.
Com certeza. O economista americano Milton Friedman escreveu que a educação é a grande instituição. Ela não só é uma instituição em si própria, como também forma todas as outras instituições. Está na base de tudo. Hoje, temos uma elite satisfeita em gerar lucros, colocar os filhos na escola privada, mas que não vê que o mundo está evoluindo. A China passou a taxa de matrícula universitária de 6% para 15% em quatro anos. E eles têm um bilhão de habitantes. Nós estamos com menos de 20% há 20 anos. Como vamos competir com esses países? Se antes não dava para competir com os países ricos, agora nem com a China nem com a Índia.