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Conhecido por ser um escritor metódico e muito econômico no uso das palavras, o dramaturgo irlandês Samuel Beckett (autor de Esperando Godot e Fim de jogo) era, no entanto, um missivista compulsivo. A sua correspondência pessoal soma 15 mil cartas escritas ao longo de 60 anos em três diferentes idiomas, a maioria para parentes, colegas de profissão e amigos. Esse material foi organizado pela editora da Universidade de Cambridge e o primeiro volume (serão quatro), com 780 páginas e reunindo 2,5 mil cartas, acaba de ser lançado na Inglaterra.

Toda essa vasta "conversa" do escritor com seus pares revela uma faceta nova de Beckett (1906-1989), que certa vez escreveu: "Toda palavra é como uma mancha desnecessária no silêncio e no nada." Crítico implacável, fica-se sabendo que ele considerava o escritor americano (naturalizado inglês) T.S. Eliot um homem bom e um péssimo poeta e que classificava O caminho de Swan, obra-prima de Marcel Proust, um texto escrito por um tipo "choramingas e com crises de dor de barriga".

 

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A verdade é que a correspondência pessoal de personalidades cultuadas é sucesso editorial garantido. E um sinal do aquecimento desse mercado é o lançamento simultâneo de cartas íntimas de autores consagrados. Algumas publicações, por exemplo, trazem cartas ainda inéditas de um dos maiores gênios brasileiros, o escritor Machado de Assis (1839- 1908).

Uma delas, recém-lançada, é Empréstimo de ouro (Editora Ouro sobre Azul), que reúne a correspondência entre Machado e seu amigo Mário de Alencar, filho de José de Alencar. A conversa por cartas acompanha os últimos dias de vida de Machado. Ele se queixa dos seus insistentes resfriados, fala com otimismo do início da Academia Brasileira de Letras ("A Academia pegou, como dizem alguns, e parece que sim") e da obra que está a escrever e que já suspeita ser a última, o Memorial de Aires.

Outra importante autora brasileira cujas cartas foram editadas recentemente é Clarice Lispector (1920-1977). A Editora Rocco lançou Minhas queridas, com a correspondência entre Clarice e suas irmãs. A primeira reimpressão dessa obra começa a ser executada – o sucesso foi além da expectativa da editora.

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Arthur Rimbaud (1854-1891), o enfant terrible da literatura francesa, também está sendo relembrado com a publicação de sua correspondência completa. O público irá conhecer suas cartas inéditas que o revelam como um homem atormentado em sua carência familiar, especialmente em relação à mãe e à irmã. Numa passagem ele escreve para a irmã Isabelle: "Engana-se em sua decisão de não se casar. A solidão é uma coisa má. Eu poderia estar casado, mas estou condenado a errar."

Rimbaud teve um obsessivo romance com o escritor Paul Verlaine. "Juntos, éramos um marido infernal e uma virgem louca", define numa carta. Em outro momento, o poeta demonstra certa irritação com os cabelos brancos que vão aparecendo: "É desoladora semelhante traição do couro cabeludo, mas o que hei de fazer?" Se o francês Rimbaud era vaidoso, o irlandês Beckett era hipocondríaco e chegou a frequentar sessões de psicanálise para tratar ataques de pânico. "São tão intensos que penso estar sofrendo um infarto."

Nessa fase de sua vida, de 28 até 40 anos de idade, Beckett também era bastante indeciso – passou algum tempo em dúvida se deveria continuar trabalhando como assistente do escritor irlandês James Joyce na criação do clássico Finnegan’s wake, se ia ser cineasta e aprendiz de Sergei Eisenstein ou se batalharia uma carreira de piloto de voos comerciais. Ficou com a primeira opção. Ele fez a escolha certa.