11/08/2004 - 10:00
Desde que Ana Maria Machado passou a se dedicar exclusivamente à literatura, na década de 80, os pais começaram a contar, na tarefa de educar os filhos, com obras como O menino que espiava para dentro, sobre um garoto que inventa um mundo melhor, e O tesouro das virtudes para crianças, com textos brasileiros que transmitem valores morais. A escritora começou a publicar contos na extinta revista infantil Recreio em 1969, enquanto se dividia entre as atividades de jornalista e pintora. Contabilizados a partir daí, são 35 anos de carreira literária arredondados este ano. Carioca de Santa Tereza, Ana Maria, 62 anos, tornou-se uma das mais importantes escritoras infantis do País: dos 18 milhões de livros vendidos, ela calcula que 17,5 milhões tenham sido para esse universo. São 115 títulos lançados em 18 países, sendo que apenas 10% são dedicados a adultos. No momento, a escritora finaliza um romance para esse público. Palavra de honra, no qual introduz temas como ética e vergonha, será entregue em poucos meses à editora Nova Fronteira. Com licença, crianças, mas a viagem edificante, agora, é dos pais.
A autora anda comovida com a adaptação para o cinema de seu livro Raul da ferrugem azul, um de seus maiores sucessos, dirigido por Gabriel Costa, que leu a história quando era criança e sonhava filmá-la. Sobrevivente da ditadura – foi presa em 1969 – e de um câncer, Ana Maria Machado se orgulha de sua trajetória, dos três filhos e dos muitos prêmios. É hors-concours da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e ganhou o Hans Christian Andersen, o Nobel da literatura infantil mundial. Desde o ano passado, é imortal da Academia Brasileira de Letras. Por coincidência, ocupa a cadeira de número 1.
Estou no processo final de um romance. Agora, deixo-o descansar e daqui a dois meses eu retomo, dou mais uma limpada, reescrevo um pouco. Vou entregá-lo em poucos meses para a editora (Nova Fronteira) e acabei de dar o nome: Palavra de honra. Comecei escrevendo sobre a imigração portuguesa no Brasil, o encontro dessas duas culturas, mas ele foi tomando outro rumo e ficou um livro sobre contrastes de alguns valores que estão se perdendo na sociedade – ética, noção de honra, de ter palavra, ter vergonha. Às vezes eu tenho a sensação de que ninguém tem mais vergonha de nada. A gente vê na televisão um documento com a assinatura de um político, documentos que o envolvem com uma determinada conta de banco e o sujeito tem a cara-de-pau de dizer que não é com ele. Isso é mostrado ao País inteiro, mas essa pessoa segue a vida normalmente. Antigamente, suicidava-se de vergonha por muito menos. Outras sociedades contemporâneas, como as do Japão ou da Inglaterra, ainda mostram pessoas se suicidando após a exibição de provas de corrupção. Elas fazem isso por não ter como segurar a pressão da execração pública. Na nossa sociedade, ninguém critica mais, então as pessoas se acham no direito de ter cara-de-pau.
Total. Está sendo roubado dessa nova geração um sistema de valores.
É. Mas grande parte da mídia bota a culpa nos pais e isso é muito cômodo. Me recuso a fazer isso. Os pais só refletem o que estão vendo em volta, o conjunto da sociedade. O cara tem um propinoduto nas costas e é solto! Temos uma lei que permite soltar criminoso de colarinho-branco e não fazemos nenhuma pressão para que ela seja mudada. Não interessa ao Congresso mudar isso e somos nós que elegemos as pessoas do Congresso. Simplesmente constatar e dizer “que pena”, “que absurdo”, sem cobrar do deputado no qual você votou, também não dá. É uma crítica inócua, que só serve para desmoralizar o processo político e a Justiça – e ninguém ganha nada com isso. Eu acho que essas acusações genéricas, absolutamente desencantadas, fazem muito mal ao País. E a imprensa está se esmerando em fazer isso diariamente. Sempre generalizando, procurando fazer com que os entrevistados digam coisas genéricas, repetindo coisas genéricas, botando títulos genéricos. É tudo pelo imediatismo.
É muito difícil. Antigamente, quando alguém dizia “fulano é homem de bem”, todos entendiam que era uma pessoa de caráter. Se dissessem que alguém não prestava, o significado também era claro: desonesto. Hoje esses conceitos são caretíssimos. O sujeito que não presta pode ser, também, o vencedor, “aquele que chegou lá”, é aplaudido. A falta de ética está também nas decisões individuais do dia-a-dia. Quem acha que tem de ser feliz e não admite limites vai propagar o “tudo pode” para os filhos e para os alunos. Pode pegar o que não é seu, pode dar em cima da mulher do outro, furar fila, agredir, matar. Se alguém está se preparando para entrar em uma vaga, você pode entrar por trás e pegar a vaga dele. Você é esperto, se dá bem, parabéns! No fundo, ética é uma coisa muito simples: não se pode fazer ao outro o que não gostaríamos que fizessem com a gente.
Não tenho compromisso com mensagem. Meu objetivo é contar uma história. Isso significa transmitir uma perplexidade, uma procura de sentido, perguntas e dúvidas. Não conheço história que não seja assim, para qualquer idade.
São nove do primeiro casamento do
meu pai e mais dois do segundo. Provavelmente
há, sim: eu era a mais velha e gostava de contar
história para eles, ajudava a cuidar dos irmãos
menores, depois sobrinhos… Mas está cheio de irmão mais velho que não é escritor, né? Então a coisa não é só isso. O fato de eu viver em um ambiente cheio de livros, com avós e pais leitores, ajudou muito.
Aprendi a ler sozinha antes de completar cinco anos. Chamaram a minha mãe no colégio
porque naquele tempo pensava-se que isso podia fazer muito mal para uma criança. Hoje, sabe-se que é perfeitamente natural. Quem está imerso num ambiente leitor aprende assim e não tem problema. Eu ganhei Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, e li porque ninguém me disse que era um livro grosso demais para uma criança pequena. Fui lendo aos pouquinhos, uma página depois da outra, e fiquei absolutamente encantada. Meus filhos aprenderam a ler muito cedo e praticamente sozinhos.
Dando o exemplo.
São dois os caminhos que fazem a humanidade aprender: despertando a curiosidade e dando exemplo. A gente canta porque ouviu alguém cantar, come com talher porque viu alguém usá-lo. Eu acho que eu lia porque meus pais liam e também falavam sobre livros na minha frente. Eu tinha loucura para ler livro de gente grande porque era algo que mobilizava a atenção da minha mãe. Às vezes, a gente queria falar alguma coisa e ela mandava esperar um pouquinho. Terminava de ler, fechava o livro e vinha nos ouvir. Aquele livro tinha uma prioridade fantástica e eu queria estar naquele universo. Não acho que a tecnologia seja concorrente. É um complemento. No tempo em que só tinha televisão, qualquer analfabeto sentava em frente e se distraía. Só usa o computador quem é alfabetizado, tem capacidade de tomar decisões e tem um razoável acervo de informações. O computador exige uma manipulação da linguagem escrita muito maior. Eu acho, então, que não atrapalha. É um braço auxiliar. A questão está toda na qualidade do que se quer que seja lido.
Ajuda sim. Harry Potter provou que criança lê, mesmo se o livro não tiver figura, não for colorido, mesmo se tiver mais de 300 páginas. Como alguém vai dizer que criança não lê depois dos números de Harry Potter?
Não se vê no ensino fundamental ou na universidade uma cadeira de literatura infantil. Então, professores podem sair para dar aula sem nunca ter lido Monteiro Lobato. Da mesma maneira, a imprensa forma jornalistas sem contato com livros de literatura. Eles valorizam muito a mídia, a tevê, o computador e esquecem que existem outras formas de acesso à informação e à formação, por meio da poesia, da leitura de romances, de ensaios.
Não é tão simples assim. Nunca se vendeu tanto livro infantil e juvenil no Brasil. As tiragens são enormes. Nas bienais, 60% do que é vendido vai para esse público. Este governo, tanto quanto o anterior, tem projetos de distribuir livros e eles estão chegando às escolas. Acho que o problema está na qualidade da leitura. Não é que ninguém leia, é o que se lê. É ler com qualidade. É ler e entender o que leu. E muitas vezes a discussão é desfocada. Sem dúvida, hoje a maioria dos estudantes brasileiros entende menos o que lê do que os estudantes de alguns anos atrás. Mas, em vez de testar os estudantes, experimente testar os professores e vai entender o porquê. A maioria dos professores lê muito menos do que os de antigamente e tem uma formação muito mais deficiente de contato com o livro. Da mesma forma, a maioria dos jornalistas hoje tem intimidade muito menor com o livro do que os de algumas décadas atrás. Esta geração está refletindo uma sociedade que não é leitora.
A mídia e o magistério são duas atividades que lidam com a palavra escrita, que teriam de dar o exemplo e despertar a curiosidade. Não adianta dizer que a mídia é assim, que devia fazer isso ou aquilo. Eu acredito muito na necessidade de mudança, de transformação das pessoas. Eu duvido que jornalista que lê seja capaz de fazer mal à literatura quando escreve. Qualquer pessoa quando vê um show bom, lê um livro bom, chega para outros e diz: “Você precisa ver esse show, ler esse livro.” Agora, quando não lê, o máximo que consegue dizer é: “Você viu o capítulo da novela? Ou o jogo tal?” Eu acho que passa necessariamente por jornalistas que leiam mais literatura. Assim, vão conseguir fazer uma melhor divulgação, despertar curiosidade do leitor porque, na hora de escrever uma reportagem, poderão comparar com um personagem ou fazer referência a um livro. Quando o repertório de leitura literária de quem faz a mídia é muito baixo, eles não têm condições de ser criativos. Apenas repetem o release e copiam palavras alheias. Ou então, cedem à simpatia do divulgador, à eficiência do marketing.
No fim de 1991, eu descobri que estava com câncer de mama, tive de fazer uma mastectomia radical e passei o ano seguinte todo às voltas com quimioterapia. Mutilada, careca, nauseada o tempo todo. Ainda sofri um acidente no mesmo ano e quebrei os dois ossos da perna, fiz uma cirurgia ortopédica e fisioterapia para recuperar os movimentos. Mudou minha vida, claro. Não sei se mudou minha maneira de encará-la, porque sempre tive muito amor à vida. Mas, objetivamente, as coisas ficaram diferentes. Passei a cuidar da saúde com mais atenção, defender meu tempo com unhas e dentes, não dar trela a gente chata. E devo ter tido maior clareza sobre as minhas prioridades a partir daí, com maior compreensão da fragilidade e a convivência com a idéia da própria morte.
Ganhar dinheiro, não. Ficar rico, não. Mas sobreviver, sim. Dá para viver com o que escrevo, e isso engloba palestras, artigos, livros, conferências. O circuito de palestras e conferências dá um bom reforço.
Não. Mas é o que eu estou com vontade de falar. Se eu estivesse interessada em escrever sobre o que as pessoas querem ler, eu estaria escrevendo sobre outras coisas.