11/08/2004 - 10:00
“Presidente, ganhamos tudo.” Eram dez e meia da noite do sábado 31 em Genebra, na Suíça – cinco e meia da tarde no Brasil. De um lado da linha, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Do outro, no Palácio da Alvorada, em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entusiasmado, Amorim relatava o resultado de cinco dias de duras e cansativas negociações na sede da Organi-
zação Mundial do Comércio (OMC), que haviam terminado com uma vitória do Brasil e dos demais países em desenvolvimento. Estados Unidos e União Européia, pressionados por um grupo liderado pelo Brasil e que incluía a Índia e a Austrália, grandes produtores agrícolas, tinham aceitado a redução progressiva, até a extinção, a médio prazo, dos subsídios agrícolas.
A decisão é histórica e dará novos contornos à economia mundial. Subsídios extintos, grandes produtores e exportadores rurais, caso do Brasil e de seus parceiros do Mercosul e da Austrália, países produtores com elevado consumo interno, como a Índia e a grande massa de países pobres que dependem da exportação agrícola para sobreviver, terão acesso a mercados e a um volume de recursos gigantesco. “Espera-se que mais de US$ 200 bilhões poderão chegar aos países em desenvolvimento. O Brasil deve ficar com 5% do total, o que representará um aumento em US$ 10 bilhões nas nossas exportações”, afirmou Amorim.
Aliados – O sucesso da negociação se deveu principalmente ao papel do Brasil, admitido pelos EUA e pela UE como um interlocutor do mesmo nível e importância. Para reforçar sua posição, o Brasil se cercou de aliados poderosos. Primeiro, garantiu o apoio do G-20, o grupo de países em desenvolvimento que também é produtor e exportador agrícola. Escolhido líder do grupo e também do G-90, o clube dos países pobres, o Brasil chamou a Índia, um de seus novos parceiros preferenciais, e a Austrália, para sentarem à mesa com os americanos e os europeus. Como o rito diplomático não funciona sem siglas, estava formado o NG-5 (o Novo Grupo dos Cinco), com a função de discutir com a presidência da OMC o futuro dos subsídios.
A maratona de reuniões começou na terça-feira 27. Amorim ouviu a Índia e o G-20 e, no começo da tarde, fez a primeira reunião do NG-5, que terminou tarde da noite. No dia seguinte, ele destinou a manhã à troca de idéias com a turma do G-20 (o mesmo bloco que melou a reunião da OMC em Cancún, ano passado), partindo para nova rodada do NG-5 na embaixada americana. “As conversas começaram a uma hora da tarde e terminaram depois da meia-noite, movidas a sanduíches”, conta. O dia mais tranquilo foi a quinta-feira 29. “Consegui ir para a casa de minha filha Anita, que é casada com um diplomata turco e mora em Genebra, às sete e meia da noite. Jantei e brinquei com os netos”, recorda o chanceler.
Foi a calma que precede a tempestade. A sexta-feira começou com a Europa e os EUA, derrotados na véspera, aceitando mudanças no texto do acordo, que mantinha alguns de seus benefícios por causa de “erros de interpretação”. Segundo Amorim, prevaleceu o acordo de cavalheiros e os dois gigantes cederam. O trabalho tomou praticamente todo o dia. Finalmente, às 17 horas, no Plenário da OMC, começou o grande debate sobre o fim dos subsídios. “As discussões foram até as sete e meia da manhã do sábado. Com muita água e café.” Levou tempo, mas tudo ficou resolvido. Depois de um sábado destinado ao ajuste fino do acordo que revolucionará a agricultura e o comércio mundiais, Amorim finalmente deu a boa-nova a Lula.
Na volta ao Brasil, esse santista de 61 anos que fala com forte sotaque carioca, obtido nos longos anos de serviço no Itamaraty no Rio de Janeiro, teve mais alegrias para comemorar. Primeiro, foi elogiado publicamente por Lula durante uma solenidade em São Paulo, com a presença da presidente mundial da HP, Carly Fiorina. Depois, colecionou elogios a seu papel de liderança na OMC pela imprensa mundial, incluindo The New York Times. Finalmente, na quarta-feira 4, recebeu um relatório confidencial da OMC informando que Brasil, Austrália e Tailândia tinham vencido a disputa contra a União Européia no caso dos subsídios europeus ao açúcar de beterraba. A OMC reconheceu que o Brasil consegue preços e custos mais baratos para seu açúcar graças à tecnologia de produção. Os europeus só oferecem os mesmos preços para o açúcar de beterraba à custa de gordos subsídios. “Essa nova vitória confirma o que foi conseguido em Genebra”, festeja Amorim.
Embrafilme – O próximo embate será em Brasília mesmo, com nova rodada de negociações entre o Mercosul e os europeus, rumo à criação de uma área de livre comércio a partir de outubro deste ano. A expectativa no Itamaraty é que o Velho Mundo finalmente abra o seu mercado aos produtos agrícolas. “A regra já mudou na Primeira Divisão, a OMC. Os outros acordos terão que seguir o mesmo rumo”, comenta. Para quem dedicou toda a sua vida ao Itamaraty, o sucesso de hoje é uma boa recompensa. Amorim só trabalhou fora da diplomacia uma vez, quando foi presidente da Embrafilme, durante o regime militar. Saiu de lá corrido pelos generais, mesmo depois de ter financiado um sucesso de bilheteria. O filme era Pra frente Brasil, de Roberto Faria, um libelo contra a ditadura. O diplomata barbudo
e baixinho já começava a mostrar suas garras.