11/08/2004 - 10:00
O oncologista Drauzio Varella tinha quatro anos quando teve o primeiro contato com a morte. Sua mãe faleceu jovem. Ele continuou morando com o pai. Seu irmão caçula, Fernando, ficou com os avós. Anos mais tarde, quando o pai se casou de novo, o garoto se reuniu à família, para alegria do irmão mais velho. Viraram grandes companheiros. Trabalharam juntos, cuidando de pacientes com câncer. Assim começou uma parceria interrompida justamente pelo mal que combatiam. Fernando teve um tumor maligno agressivo. Resistiu até onde pôde e extraiu da vida em seus momentos finais tudo o que lhe dava prazer. Essa é uma das histórias que Varella, 61 anos, conta em Por um fio (Ed. Companhia das Letras), que acaba de ser lançado. O livro não se restringe a episódios reais em que a esperança foi vencida, narrando também casos em que os doentes deram a volta por cima. Neste trabalho, o autor de Estação Carandiru registra retratos da alma humana diante de um dos maiores medos do homem. Habituado a conviver com doentes em fase terminal, Varella, que tem 37 anos de formação como médico, diz que não há regras para lidar com pessoas prestes a enfrentar o inevitável. Apenas aconselha a olhar a realidade pelos olhos do outro. “A doença muda sua sintonia com o universo”, diz.
ISTOÉ – Ao longo dos anos, o sr. criou um jeito de lidar com pacientes em
estado terminal?
Drauzio Varella – Esse é um aprendizado adquirido no decorrer da vida. Com a idade, você erra cada vez menos, mas continua parando para pensar: “Será que tomei a atitude mais adequada? Será que falei a palavra que a pessoa esperava ouvir?” É muito difícil porque se deve atender à expectativa do outro. Para isso é preciso ter empatia com o paciente. O grande médico é o que conhece com mais profundidade a alma humana, além de dominar a técnica.
ISTOÉ – Como o médico deve agir em casos em que não há mais esperanças?
Varella – No começo, às vezes me deixava tomar pela emoção. Olhava para aquela pessoa e não sabia o que dizer porque eu estava pior do que ela. Deus me livre de ter um médico assim num momento desses! Você tem de achar o equilíbrio e entender que a vida acaba para todos. Para alguns, aos 90 anos. Para outros, aos 15. O fato de você se entristecer não pode interferir no seu relacionamento com o paciente. É preciso achar um jeito de falar com as pessoas que não destrua as esperanças e que também não dê esperanças vãs. Se isso ocorrer, o doente perde a confiança no médico.
ISTOÉ – Em seu livro, um paciente diz que a vida não tem sentido. Nós é que criamos sentidos todos os dias. No estágio em que estava, ele não criava mais nenhum. O médico deve fazer com que o paciente encontre um sentido?
Varella – Depende de quanto você acredita na vida. Se você não acredita, não adianta falar uma coisa pensando em outra. Mas, se acredita que vale a pena viver, consegue transmitir essa sensação.
ISTOÉ – O sr. sempre acredita que vale?
Varella – Quase sempre. Chega um momento em que o corpo não dá mais nenhum prazer. Ao contrário. Vira uma fonte de sofrimento permanente. Aí, não vale a pena. Pegue o exemplo de alguém em estado terminal que sente muita dor e precisa tomar analgésicos em doses altas e dorme por causa da quantidade do remédio. Quando acorda, está sonolento e não tem prazer em estar com as pessoas em volta. Eu pergunto claramente se há alguma coisa que dá prazer. Se ele responde “nada”, aí chegou o final da vida.
ISTOÉ – O que o sr. pensa da eutanásia?
Varella – Acho que o paciente tem o direito de dizer “não quero mais viver”. Eu encontrei quatro ou cinco nessa situação. Dois não tocaram mais no assunto. Nos outros casos, o que fiz foi sedar. Um deles me pediu para não sentir mais dor. Não havia dose de analgésico para acabar com as dores e deixá-lo consciente. Eu disse que a dose administrada o deixaria dormindo. Ele quis assim mesmo. É desumano deixar alguém urrando de dor, sabendo que a doença está chegando ao final.
ISTOÉ – O sr. começou a escrever esse livro em 1981. Por que o interrompeu?
Varella – Em 1981, escrevi algumas histórias. Mas achei que era muito jovem e imaturo para falar sobre isso. Tinha 38 anos. Com essa idade, você está muito ligado à juventude, tem filhos pequenos. Quem tem filho morre de medo de morrer. E esse não é livro para ser escrito por quem tem medo de morrer (risos). Ele implica estar em contato com a morte, em aceitá-la como uma coisa natural. Recomecei antes dos 60 anos e levei três anos para concluí-lo.
ISTOÉ – O livro traz a história de seu irmão (médico), que morreu de câncer no pulmão. O sr. assimilou essa morte? Isso se assimila?
Varella – Não. Você vai se acostumando com a idéia de que perdeu alguém querido. Parece que o teto da felicidade teve um rebaixamento. Você anda dobrado no início porque o teto ficou muito baixo. Com o tempo sente que consegue esticar a cabeça, levantar o tronco. Mas não volta à posição em que estava antes. Você passa muito tempo tendo saudade da pessoa. O que acontece é que você se conforma. E procura achar outras belezas na vida (emocionado).
ISTOÉ – Que conselhos dá aos médicos mais novos?
Varella – Enxergue a realidade que o outro vê, não a que você vê. Não é fácil. Para quem não é médico, vale o mesmo. Tem uma parte no livro em que digo que a finalidade da medicina não é curar. É aliviar o sofrimento. Isso não é apenas função do médico, é função de todos. Se você tem uma amiga que está morrendo, quantas vezes você se diz que não irá vê-la porque não pode fazer nada? “Vou ficar triste e não vou ajudar.” Mas sua visita pode aliviar o sofrimento dela. Você pode contar histórias ou simplesmente chorar com ela. A gente tende a fugir do sofrimento. É algo forte em nós. Até nos próprios médicos.