Sonhar é acordar para dentro. Assim
escreveu o poeta Mário Quintana. E
desse modo cientistas de grandes
centros de pesquisa têm encarado o
papel dos sonhos. É uma postura
relativamente nova. Antes, na história
recente da medicina, vinha mais da
psicanálise – campo criado pelo
austríaco Sigmund Freud – a dedicação
em compreender a função do sonhar.
Agora, há um número maior de especialistas dispostos a esmiuçar essa atividade. “O interesse está ressurgindo com ênfase em estudos a respeito do entendimento desse fenômeno como algo que envolve cérebro e mente”, assegura Philippe Stenstrom, do Laboratório de Sonhos e Pesadelos da Universidade de Montreal (Canadá). Em outras palavras, estão na mira os aspectos fisiológicos que permitem ao cérebro gerar “filmes” e o peso emocional dos dramas cotidianos nessas imagens. Está-se descobrindo que os sonhos podem refletir um problema psicológico e de saúde e até que nosso “cinema particular” tem potencial terapêutico.

Esse poder vem sendo defendido, por exemplo, por especialistas das universidades canadenses de Montreal e de Alberta. Juntos, eles desenvolveram no ano passado um trabalho que acompanhou 407 pessoas durante uma semana. Os voluntários fizeram diários do que se lembravam de ter sonhado. Também foram registradas situações desgastantes que surgiram. A conclusão? Se você precisa de soluções, procure-as em seus sonhos. Explica-se: o estudo mostrou que os dilemas retornaram à mente adormecida cerca de sete dias após a ocorrência, porém de forma que revelavam meios de lidar com eles. Uma leitura das anotações, portanto, apresentaria caminhos para resolver um conflito que perturba, mesmo que não tenha sido percebido nas horas acordadas. Por isso, os experts sustentam que manter um diário de sonhos é uma terapia. Boa e barata. “Isso permite encontrar padrões e relações com eventos da vida, o que pode produzir uma percepção importante para o sonhador”, emenda Stenstrom. O psicólogo Don Kuiken, professor em Alberta, assina embaixo. Segundo ele, reviver o problema desse modo, dias depois de ter ocorrido, sugere um esforço em liquidá-lo. “Os sonhos são um tipo de tratamento”, declara.

Perfeito, se não fosse por um detalhe: muita gente tem a sensação de que não costuma sonhar. Com isso, o recurso não serviria para todos. Na verdade, o que ocorre freqüentemente é a pessoa esquecer o que sonhou. A razão disso não está decifrada. Entretanto, uma das teses é que a movimentação logo que se desperta apaga as lembranças. Para não perdê-las, a recomendação é tentar rememorar o que se passou assim que acordar. Mas há outro porém em relação ao aspecto terapêutico atribuído por alguns estudiosos. Por mais que as pesquisas se multipliquem, não existe consenso a respeito do papel dos sonhos. “Há uma discordância quanto às funções”, diz Patricia Garfield, autora do livro The universal dream key (A chave do sonho universal, em tradução livre) e uma das fundadoras da Associação Internacional de Estudos dos Sonhos. “Há várias teorias. A mais comum se refere à consolidação da memória”, sublinha a inglesa Maeve Ennis, co-autora de Fique por dentro dos sonhos (Ed. Cosac&Naify). “Vemos mudanças elétricas que ocorrem no cérebro e notamos momentos em que se sonha mais. De resto, o que temos são interpretações subjetivas. Não existem medidas diretas que esclareçam dúvidas como se sonhamos colorido”, observa a neurologista Márcia Chaves, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Inconsciente – Para os psicanalistas, o sonho é visto como um caminho ao inconsciente, como Freud salientou no início do século XX. Em 1900, o médico promoveu uma revolução ao lançar A interpretação dos sonhos. Sua idéia não era apenas desvendar o mistério contido nas imagens passadas durante o sono, mas fazer associações que trouxessem à tona desejos recalcados de homens e mulheres. A psicanálise conferiu mais peso ao sonhar, algo tão valorizado que fez com que Freud e seu contemporâneo, o suíço Carl Jung, analisassem seus respectivos sonhos. O hábito foi abandonado depois pelo austríaco, ao perceber que poderia estar se expondo demais ao colega. Na visão dos freudianos, os sonhos são uma marca dos mecanismos pelos quais o bebê se forma, se civiliza, para buscar no mundo seus amores, trabalho, prazer e desprazer. “Eles nos levam a uma decifração desta criança que, de algum modo, sempre seremos”, afirma José Otávio Naves, da PUC-Rio. Os discípulos de Jung julgam que o inconsciente indica meios para as pessoas se curarem de distúrbios. O psicanalista junguiano Álvaro Gouvea, também da PUC-Rio, diz que o sonho aponta para o fluxo de saúde do inconsciente, cujo desejo interior é o de sarar. Um paciente com sintomas de depressão costumava se ver morrendo afogado. Numa sessão, foi estimulado a se lembrar que nadava bem, o que era fato. Depois de sonhar que exercia suas habilidades na água, transformou seu estado e se recuperou.

Além da psicanálise, outras linhas psicoterapêuticas reforçam a importância de abrirmos os olhos para as projeções que fazemos enquanto dormimos. A psicoterapeuta Maria de Melo acaba de lançar A coragem de crescer, sonhos e histórias para novos caminhos (Ed. Record), no qual incentiva os indivíduos a desenvolver o lado sonhador. “Os sonhos são caminhos para as profundezas de cada um”, assegura. Maria acredita que, quanto mais dedicarmos atenção a eles, maior o conhecimento pessoal e, por tabela, melhor a qualidade de vida. A idéia, no entanto, não é fazer com que os sonhadores tomem os livros de significados como tradutores do que se passa na mente. O objetivo é levá-los a pensar no que está acontecendo com a própria vida. “Sonhar traz um recado existencial. Não é simplesmente a realização frustrada de um desejo. É uma elaboração sintética de sentimentos e percepções do que o sujeito vive. Muitas vezes, ele está tão ocupado com certas responsabilidades que não está atento a essas questões”, afiança Nichan Dichtchekenian, professor da PUC-SP. A psicóloga Vânia Sartori, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), concorda. “Nos sonhos, você se entrega. Por isso, é importante que as pessoas os valorizem porque são um espelho”, afirma.

Distúrbios – É bom salientar que há razões biológicas que podem explicar alguns sonhos. Segundo o neurologista Luciano Ribeiro Pinto Jr., do Instituto do Sono, ligado à Unifesp, pesadelos podem ser um dos primeiros sinais de mal de Parkinson. Há ainda um problema chamado de distúrbio de comportamento do sono REM. Quem sofre disso não fica paralisado enquanto dorme. Em condições normais, o indivíduo não se mexe quando atinge a fase REM. O portador do distúrbio, porém, se movimenta, repetindo o que vê no sonho. É perigoso porque ele pode sair andando, bater em alguém, jogar-se da janela. E o pior é que geralmente as cenas imaginadas são violentas. Trata-se esse problema com benzodiazepínico. “A análise dos sonhos não deve ser feita somente do ponto de vista psicológico. É preciso entender o lado biológico”, diz o neurologista. Para justificar seu argumento, ele relata o caso de uma paciente que sempre sonhava estar sendo sufocada. A mulher não estava passando por conflitos que a oprimiam, uma possível interpretação. Descobriram que ela tinha apnéia do sono (distúrbio caracterizado pela interrupção momentânea da respiração).

De qualquer modo, avaliar nossos sonhos é um meio de contribuir para que nosso estado físico e mental esteja melhor. Pesadelos contínuos e intensos, por exemplo, devem ser combatidos. Eles estão muito associados ao stress pós-traumático (marcado por alterações emocionais e físicas geradas depois de um trauma). “Nesse caso, os eventos traumáticos se repetem nos pesadelos. Estudos apontam que reduzir o número deles pode diminuir os sintomas do distúrbio”, diz o cientista Stenstrom. No laboratório do sonho da instituição canadense no qual o pesquisador trabalha, investigam-se métodos eficazes para a redução da freqüência dos pesadelos. Uma técnica é a pessoa, desperta, reproduzir o trauma na mente, mas fazendo mudanças no cenário. O exercício deve ser realizado por cinco minutos diariamente até que a reprise de horror diminua.

Entregar-se a Morfeu, o mitológico deus grego do sonho, também pode fazer bem ao incentivar nossos pendores artísticos. “Sonhos são produções criativas. Artistas, poetas e compositores os usam como fontes de inspiração”, lembra Rosalind Cartwright, co-autora do livro Crisis dreaming, no qual relata a associação entre momentos críticos e os sonhos. Pudera. Quem nunca viajou por um mundo tão encantador ou viveu um enredo tão fantástico que só podia ser sonho mesmo?