A política externa brasileira implantada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo chanceler Celso Amorim, antes tida como uma das poucas jóias da coroa, hoje está sob fortes críticas. A principal delas é que o Brasil teria deixado de lado um aliado tradicional e poderoso como os Estados Unidos em troca de relações com países em desenvolvimento e do Terceiro Mundo, sem grande efeitos positivos. Outro aspecto muito criticado é a tentativa do País de assumir posições de liderança na política mundial, o que teria gerado uma sucessão de fracassos – o Brasil perdeu eleições na Organização Mundial do Comércio (OMC) e no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) –, além de ver seu esforço para obter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU ser torpedeado pelos EUA, pela China e até pela Argentina, parceira do País no Mercosul. Mas é do vizinho Paraguai, membro do Mercosul, que uma espécie de “fogo amigo” ameaça fazer encalhar o barco do bloco do Cone Sul. Os paraguaios pretendem negociar de forma isolada com os EUA um acordo comercial e ainda estariam em tratativas com Tio Sam para ceder território para uma base militar. Em entrevista a ISTOÉ, Amorim disse que uma negociação unilateral do Paraguai com os EUA não pode ser feita e considera preocupante a presença de militares americanos no país vizinho. Rebatendo as críticas, o chanceler diz que, apesar das derrotas pontuais, o Brasil não apenas aumentou muito sua participação no comércio mundial como tem hoje um papel de protagonista no cenário internacional.

ISTOÉ – O Paraguai estaria em negociações com os Estados Unidos para
fechar um acordo comercial independente do Mercosul. Como o Brasil
encara essa situação?
Celso Amorim –
É simples: o Paraguai, como membro do Mercosul, não pode fazer esse tipo de acordo. O Mercosul negocia em bloco, como, por exemplo, a Alca e a União Européia. Para negociar em separado, o Paraguai teria que sair do Mercosul, do qual é fundador. E ninguém quer isso. Mas o Brasil e a Argentina têm consciência, como os mais fortes economicamente do Mercosul, de que algo precisa ser feito para ajudar o Paraguai a se desenvolver. Investimentos diretos, aumento do comércio, apoio técnico. Ações desse tipo, positivas, para que não ocorra um vácuo de poder e o Paraguai se sinta só e pense em buscar outras parcerias.

ISTOÉ – Qual é a posição brasileira sobre a propalada instalação de uma base militar dos EUA no Paraguai?
Amorim –
É uma situação parecida com as aparentes negociações econômicas fora do Mercosul. O governo paraguaio já nos deu reiteradas garantias de que não haverá base militar estrangeira em seu território. Mas a presença de 400 marines em manobras militares durante alguns meses no Paraguai evidentemente preocupa, pois é um contingente importante. A saída é, novamente, o Mercosul dar mais apoio ao Paraguai, ocupar de maneira positiva o espaço, fornecer equipamentos, dar treinamento militar. Na verdade, o Mercosul tem que acelerar o desenvolvimento de uma política de defesa comum, de modo a inibir intenções de outros países. A mistura de problemas econômicos e de defesa é complicada e temos que encontrar uma solução. Esse papel de integração do Mercosul precisa ser reforçado.

ISTOÉ – A reforma do Conselho de Segurança da ONU está emperrada, com países como a China, a Rússia e os EUA resistindo à proposta do G-4 (Brasil, Alemanha, Japão e Índia), que previa a ampliação do número de membros permanentes. Esta reforma não estaria fadada ao fracasso?
Amorim –
Não. O presidente Lula fez um discurso forte no Conselho de Segurança, marcando com clareza nossa posição. As negociações continuam até que se encontre um consenso. O próprio secretário-geral, Kofi Annan, lamentou que não se tenha chegado a um acordo ainda este ano. O importante é que o G-4 segue mais unido do que nunca e mantém firme sua posição para as futuras negociações.

ISTOÉ – A presença militar do Brasil, comandando a força de paz da ONU
no Haiti, tem sido alvo de críticas. Para alguns analistas, o País estaria simplesmente desempenhando o papel de polícia dos EUA, fazendo o serviço
sujo em lugar dos americanos.
Amorim –
O Brasil tem tradição em participar de missões de paz das Nações Unidas. No caso do Haiti, entramos junto com outros parceiros da América Latina, como a Argentina, que tem o segundo maior contingente de tropas no país. É uma questão que interessa diretamente a nós e temos autoridade moral para estar desempenhando o trabalho. Não somos a polícia a serviço dos EUA, exercemos uma liderança positiva. Mas não adianta apenas mantermos tropas sem que os investimentos em infra-estrutura, em saúde, na formação de mão-de-obra, na geração de empregos, prometidos pela comunidade internacional, sejam efetivamente feitos.

ISTOÉ – A relação entre Brasil e Argentina, os principais parceiros comerciais
e políticos do Mercosul, segue conflituosa. Esse conflito não atesta o fracasso
do bloco?
Amorim –
Não, de maneira nenhuma. Primeiro, é preciso avançar cada vez mais na consolidação institucional do Mercosul. Temos tido avanços no campo jurídico, na implantação do Tribunal do Mercosul, na arbitragem de pendências comerciais. Temos que ser mais incisivos na formulação de uma política econômica comum, por exemplo. Mas não se pode esquecer que a Argentina é nosso segundo parceiro comercial individual em todo o mundo. E somos os primeiros deles. Mas temos que analisar o quadro atual, em que exportamos muito mais do que importamos da Argentina. Em um bloco econômico, isso acaba causando mal-estar. Mas deve ser destacado que os setores nos quais toda hora há conflito, como geladeira, têxteis, calçados etc., representam apenas 3% do total da corrente de comércio entre os dois países. Temos que lembrar que a Argentina, depois de ter passado por uma crise econômica terrível, começa a se recuperar, a produzir e a querer exportar.

ISTOÉ – Falando de negociações problemáticas, como estão os entendimentos sobre a Alca e o acordo com a União Européia?
Amorim –
A Alca, da maneira como os americanos colocaram a questão em Cancún, no final de 2003, era inviável. Os EUA queriam mudar as regras para padrões além da OMC, sem praticamente fazer concessões ou abrir seus mercados. Em 2004, na reunião de Miami, se estabeleceu outro modelo, aceitável, que, segundo os novos responsáveis pelo comércio exterior dos EUA, deverá ser a base da retomada dos entendimentos no futuro. Sobre a União Européia, as novidades são boas. A recente reunião que tivemos em Bruxelas definiu um novo cronograma de reuniões técnicas e foram priorizadas as discussões sobre melhorias nas ofertas agrícolas e nos serviços e a flexibilização de tarifas, para se tentar um acordo até maio de 2006. O mais importante é que há uma clara noção de que o interesse político na formação do novo bloco precisa ser valorizado e que o acordo será útil para os dois lados.

ISTOÉ – Muitos analistas têm atacado duramente a política externa do governo Lula, destacando fracassos como a derrota do Brasil nas eleições para a presidência da OMC e do BID. Alguns falam até em megalomania da atual orientação do Itamaraty.
Amorim –
Talvez haja gente que preferisse que nada mudasse, seja por conveniência, seja por comodismo. Preferimos ser protagonistas, disputar posições de destaque no mundo. Perdemos algumas disputas, mas política externa não é futebol. O papel do Brasil hoje é de protagonista da história. Criamos o G-20, o G-4, ampliamos nossas fronteiras comerciais, buscando novos parceiros, sem deixar de lado os tradicionais. O resultado, por exemplo, é um crescimento de mais de 50% nas exportações para a África, acima de 40% para os países árabes, de mais de 20% para a Europa e de quase 50% para os países em desenvolvimento. Conseguimos nova vitória na OMC, derrubando as restrições dos europeus às exportações de frango do Brasil. Talvez esse papel de liderança que o Brasil assumiu no governo do presidente Lula incomode alguns setores.