18/08/2004 - 10:00
A carioca Lygia da Veiga Pereira, 37 anos, quase causou uma revolução em casa ao escolher a área de exatas na faculdade. Filha de mãe socióloga, pai filósofo e neta de um dos maiores editores do Rio de Janeiro, José Olímpio, parecia natural que ela trilhasse o caminho das ciências humanas. Física de formação e doutora em genética no Monte Sinai de Nova York, Lygia é hoje uma das autoridades em células-tronco e lidera um dos mais importantes grupos de pesquisas em genética da Universidade de São Paulo (USP). De certa forma, ela cumpriu o sonho familiar. Escreveu Sequenciaram o genoma… E agora? e Clonagem, fatos e mitos, obras que explicam de maneira didática dois assuntos atuais. “Uso e abuso de analogias. Insisto que o genoma é uma receita para se fazer um ser humano e que o gene é uma instrução daquela receita”, diz. Entre seus trabalhos estão o primeiro camundongo geneticamente modificado do País e os testes com cobaias paralíticas, que recuperaram o movimento após tratamento com células-tronco. Enquanto espera a votação da emenda da Lei de Biossegurança, que permitiria pesquisas com embriões humanos, Lygia trabalha com essa células importadas dos EUA. Com uma rotina idêntica a de milhares de mulheres profissionais, ela divide o tempo entre o laboratório, a universidade, o marido, dois enteados e a filha de pouco mais de um ano. A seguir, trechos de sua entrevista:
Vir de uma família de não-cientistas facilitou meu gosto pela divulgação científica. Eu chegava em casa e tinha de explicar aos meus pais o que eu fazia no laboratório. Esse exercício ainda ajuda na hora de escrever artigos e foi a base dos meus dois livros. Não podemos ter medo de simplificar. O jargão fica tão incorporado que, quando o cientista fala para a sociedade, ele nem percebe.
Houve muita crítica a O clone, da Glória Perez, por apresentar a clonagem de forma equivocada. A novela, ou qualquer programa de tevê, não tem compromisso com o rigor científico. Se tivesse, ia ser um saco e a novela não poderia sequer se chamar O clone, porque não poderia nascer um clone. A autora precisava de liberdade poética para criar sua história. Só que ela colocou o debate na boca do povo. Gerou uma conscientização na população. Graças a essa novela, quando discutimos o uso do embrião, se vai fazer clonagem ou não, as pessoas sabem do que se trata.
Quando surgem novas tecnologias, é fundamental surgir leis para regulamentar seu uso. Um exemplo é o acesso ao código genético. Ele pode prever doenças, mas será que a seguradora vai recusar uma apólice ou cobrar a mais se souber que a pessoa pode desenvolver uma doença? E o empregador, vai querer contratar o funcionário com risco de ter ataque de coração? A arma contra o mau uso da ciência é uma população bem informada. Daqui a pouco vão descobrir genes relacionados com o QI e a agressividade. Aí, será que as escolas vão querer crianças agressivas? Vão escolher seus alunos de acordo com o potencial de inteligência? São questões importantes, que podem gerar discriminação.
Há indicações de genes que influenciam certos comportamentos, mas
nada muito conclusivo. Existem vias metabólicas que tornam um indivíduo mais ou menos resistente ao álcool. Não podemos achar que o genoma é uma bola de cristal, em que basta olhar para o código genético de uma pessoa e dizer se ela vai ser alcoólatra ou obesa. Somos um produto da nossa genética e do meio ambiente. Pode ser que tendências genéticas sejam anuladas ou contrabalançadas por um estilo de vida específico. Nossa história não está escrita só no genoma.
Nosso genoma regula todos os processos fisiológicos e patológicos,
como hipertensão e asma. Conhecendo os genes que vão apontar se vou ter maior probabilidade de desenvolver certas doenças, o que determina se vou desenvolver ou não é a minha genética e o meu estilo de vida. Se, a partir da análise do meu genoma, um clínico diz que tenho propensão a pressão alta, vou passar a me cuidar melhor. A fazer exercícios, não fumar nem comer gordura. Ao fazer isso, talvez eu nem desenvolva a doença.
Realmente há uma onda de sensacionalismo. Ela é em parte motivada
pelo projeto de biossegurança que tramita no Congresso. Isso dá uma falsa sensação de que só esperamos a aprovação da lei e pronto, que podemos tratar todas as doenças da noite para o dia. Ao aprovarem essa lei, vamos começar as pesquisas com células de embriões humanos no Brasil. É um longo caminho que um dia pode nos levar a novas terapias para doenças para as quais hoje não temos tratamento eficiente.
Minha suposição é em torno de dez anos. Nos testes com animais, temos resultados promissores no tratamento de mal de Parkinson, em traumas de medula e insuficiência cardíaca. Vamos começar em humanos o que já deu certo com animais. O rato com trauma de medula que recebeu células embrionárias não saiu correndo, mas recuperou parcialmente o movimento das patas. A célula embrionária dá origem a um grupo de células que origina todos os tecidos do indivíduo: osso, pele, sangue, músculo, neurônio, tudo.
O primeiro impacto é nas doenças genéticas. Se conheço um gene que, quando defeituoso, causa uma doença como a hemofilia, posso fazer um diagnóstico mais preciso no pré-natal, porque vou ver o gene e não a manifestação da doença. Com isso surgem terapias mais eficientes. Uma grande promessa é a medicina preventiva baseada nos genes. Outra são os medicamentos feitos a partir dos genes do paciente. A medicina será mais eficiente e individualizada. Hoje, o médico não sabe se o remédio vai fazer efeito, a não ser testando. Daqui a um tempo, em vez de um tratamento na base da tentativa e erro, será possível fazer um baseado nos genes do paciente.
Se fosse comigo, eu preferiria não saber. Acho que é melhor viver alegre na ignorância e um dia levar um susto. Ainda se detecta muito pouco com exames genéticos. Identificamos um gene importante no câncer de mama, mas, se fizermos uma triagem, ele está presente em 1% das pacientes. Os exames genéticos são mais usados no pré-natal, para detectar síndrome de Down ou doenças presentes em algum membro da família.
As células-tronco adultas, encontradas na medula óssea e no sangue do cordão umbilical, não são tão versáteis. Pelo menos não até agora. Até uns sete anos atrás, achávamos que as células-tronco da medula eram capazes de formar as células do sangue. Hoje sabemos que elas se transformam em músculo cardíaco, neurônios e células do fígado, mas não têm o potencial dos embriões. Daqui a alguns anos podemos descobrir que elas tinham esse potencial. A grande diferença entre ciência e religião é que enquanto a religião se baseia em verdades absolutas, a ciência é baseada em verdades transitórias. Não podemos nos dar ao luxo de dizer que não precisamos das células de embriões.
Quando o cordão umbilical é cortado, cerca de 200 mililitros de sangue ficam ali e na placenta. Esse material rico em células-tronco costuma ser jogado fora. Quando os americanos se deram conta disso, eles criaram bancos públicos de sangue de cordão. O mesmo aconteceu na Europa. Essas amostras atuam da mesma forma que o banco de medula óssea. Se uma pessoa precisa de transplante, ela recorre ao banco de medula e ao de sangue de cordão. Nos bancos privados, você armazena o cordão de seu próprio bebê. No público, você tem acesso a cordões de vários doadores. No caso de congelar o do seu próprio filho, o uso é mais restrito, pois, se no futuro ele desenvolver alguma doença genética, ele não poderá usar o sangue já congelado.
É uma questão de custo-benefício. A probabilidade de seu filho desenvolver uma doença em que necessite de transplante de medula e que possa usar suas próprias células é muito pequena. Pode ser que, quando ele precisar de transplante, não encontre doador compatível.
Para mim ele funciona como um seguro extra. Tem gente que paga um valor a mais no plano de saúde para ter direito a mais dias na UTI. Qual é a probabilidade de você ter uma doença que a obrigue a ficar internada mais de 30 dias na UTI? Muito pequena, mas, se precisar e o seguro não cobrir, você pode ir à falência. É a mesma coisa com as células do cordão umbilical. A saúde mais básica é elitizada no Brasil. Por isso, a necessidade de discutir ciência em paralelo com política.
Um grupo de cientistas de Harvard disponibilizou para a comunidade científica 17 linhagens de células de embriões humanos. Com isso, eles estão capacitando grupos no mundo inteiro para fazer esse tipo de pesquisa. No Brasil,
eu não posso pegar um embrião, destruí-lo e ter as minhas células embrionárias, mas posso receber dos EUA as células criadas lá. Ou seja, os embriões foram destruídos lá. Eu recebo um amontoado de células e, a partir daí, meu grupo começará as pesquisas. Isso é ótimo, mas não tenho muita autonomia. Assinei
uma série de papéis com limitações do que posso fazer. Não posso transformar essas células em algum produto.
Os testes com animais tiveram resultado positivo. Só que não podemos submeter um ser humano a um procedimento que não sabemos se é seguro o suficiente. Há algumas questões que precisamos solucionar antes de injetar células embrionárias em pacientes. A primeira é saber se o embrião usado é compatível com o paciente. A clonagem terapêutica é outra alternativa porque produz células geneticamente idênticas às do paciente. O ator Christopher Reeves tem um trauma de medula. Pegaríamos uma célula dele, colocaríamos o núcleo dentro de um óvulo, como se fosse um clone. Quando o embrião tivesse cinco dias, em vez de transferir para o útero, tiraríamos as células embrionárias para multiplicar em laboratório. Aí poderíamos transformá-las em células nervosas e injetar na medula, sem rejeição.
A segurança. Essas células têm capacidade de virar qualquer tecido, mas há o risco de formarem um tumor. Se quisermos injetar essas células em um ser humano, temos de ter condições de segurar as rédeas, para que elas virem exatamente aquilo que queremos. E não se transformem no que bem entendem.
Em casos de doença grave, ou de bebês com qualidade de vida horrorosa, ou que não vão sobreviver. O problema é se aparecerem casais querendo interromper a gestação porque o bebê não será tão inteligente ou não herdou a cor do olho da mãe. Como vamos separar o que é doença do que é bobagem? A manipulação genética de embriões é proibida internacionalmente. Não podemos fazer alteração genética que possa ser transmitida para os descendentes.
Não deveria. Acho o fim da picada. Tal conhecimento não deveria ser usado para esses fins, a não ser em casos onde há riscos de doenças.
Não sabemos o que é ter um filho doente, que precisa de transplante,
mas não acha doador compatível. Não é uma situação trivial, mas não é trivial
ter um filho morrendo e que pode ser salvo por um futuro irmão. Não é como escolher o sexo ou a cor do olho..