A profecia está consumada. Quando tinha 14 anos, Fernando Collor de Mello passava férias com o pai no Grande Hotel Araxá, em Minas Gerais, e foi levado à então vidente mais famosa do Brasil, Maria do Correio. “Vai acontecer algo trágico na sua vida por volta dos 40 anos”, previu ela. “A morte?”, perguntou o assustado garoto. “Não, a morte em vida”, respondeu, enigmática. “Mas para sempre?”, insistiu. “Não, um dia essa morte acaba.” Aos 40 anos, Fernando foi eleito presidente da República. Confiscou a poupança popular, desmontou o Estado, abriu o País aos estrangeiros. Muitas vezes parecia em guerra contra os próprios brasileiros. “Eu era muito imaturo”, desculpa-se hoje. Em outubro de 1992, foi afastado do poder pelo Congresso, num processo tão democrático quanto humilhante, o impeachment, em meio a uma torrente de corrupção. Foi a tal morte em vida. Na semana passada, deu-se a ressurreição.

Na quinta-feira, 1º de fevereiro, Collor voltou à cena política. Aos 57 anos e depois de 14 longe dos acontecimentos, ele iniciou um mandato de oito anos como senador por Alagoas. Tomou posse, em sessão solene, no mesmo plenário que o defenestrara. Cercado por jornalistas, curiosos e uma claque de aliados alagoanos, entre eles 25 padres benzedeiros, foi festejado pelos colegas como uma estrela de primeira grandeza da política. Elle voltou quase do mesmo jeito, grafando o nome com dois “ll”, sua marca registrada, autoconfiante, ambicioso. O que ele pretende? Ora, Collor prepara sua candidatura à Presidência da República na sucessão de Lula, em 2010. É um acalento que vem crescendo há dois anos, à medida que se consolida a relação com Caroline, sua terceira mulher, 28 anos de idade, 29 anos mais nova. Hoje pai das gêmeas Celine e Cecile, de oito meses, ele tingiu os cabelos de negro, retocou as rugas com Botox e cultua um corpo esculpido com ginástica pesada. Tatuou o nome da mulher no punho esquerdo, como se fosse marinheiro de primeira viagem. A um amigo, confidenciou que está se sentindo com tanta energia que se vê com todas as chances de virar de novo presidente. “O homem tem a idade da mulher que ama”, gaba-se.

Joédson Alves

Novo gabinete Com quase 200 metros quadrados, está em fase de arrumação

A volta de Collor sacudiu o mundo político de Brasília. “Ele já chega com a força de candidato à Presidência, vai fazer alguns discursos e logo começa a articular a campanha de 2010”, aposta o veterano Antônio Carlos Magalhães, do PFL. “Collor tem experiência e capacidade não lhe falta”, lembra Pedro Simon, do PMDB e decano do Congresso. Já o tucano Álvaro Dias não põe fé. “Ele começa da estaca zero, não vem pau-a-pau com os outros senadores”, diz. “Terá uma tarefa inglória para recuperar a credibilidade.” Pode ser. Mas o fato é que Collor chegou despertando reverências até entre adversários. Minutos depois de tomar posse, o senador Eduardo Suplicy, do PT, o procurou. “Espero ter uma relação construtiva e de respeito com o senhor”, propôs. “Passou-se muito tempo, o senhor já cumpriu a pena de oito anos e o povo o absolveu concedendo-lhe um mandato.” Suplicy acrescenta: “Collor terá um peso forte. Todos estarão atentos a seus movimentos.”

Roberto Castro

Plano partidário Eleito pelo PRTB, com apenas 28 filiados, quer ir para o PTB

Na intelligentsia, Collor só desperta ceticismo. “Dizem que o povo tem memória curta, mas o impeachment dele foi há pouco tempo e marcou a geração que é hoje maioria do eleitorado”, disse a Aziz Filho, de ISTOÉ, no Rio de Janeiro, o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, Eurico de Lima Figueiredo. “Um nome como o dele não desperta mais expectativas nacionais.” O cientista político Nelson Carvalho, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, também considera impossível para Collor repetir o sucesso como líder carismático que quebra instituições. “Se há uma tendência latino-americana preocupante, o Brasil tem trilhado outro caminho, que não permite mais a decolagem de lideranças individuais de natureza carismática.” Ele arremata. “Os ‘descamisados’ de Collor hoje estão incorporados à base do lulismo.”

“Autoridade sem liberdade é tirania. Liberdade sem
autoridade é anarquia”

“Os resultados são o testemunho de que quando se
quer com pertinácia se consegue por justiça’’

 

 

Antecipação do debate sucessório termina por ser aposta na crise”

 

“Crise de representatividade política: os integrantes do Congresso devem entender que a vitória eleitoral…

…não é uma carta de alforria para que cada um se represente a si mesmo. Eles detêm, isto sim, mandato de representação”

“Temos que nos preocupar agora com o país das aflições
e não com o país das eleições. Estou…

…certo de que meus apelos encontrarão ressonância
em todos os setores”

O novo projeto político de Collor tem começo, meio e fim – e está no meio. Ele já passou pelo eleitorado alagoano, que era o primeiro passo, mas sabe que a rejeição no resto do Brasil ainda é grande. Por isso, pretende primeiro chegar a Brasília demonstrando que mudou, que o exílio o forjou mais humilde. Vai tentar se manter discreto, falando de economia e apresentando projetos de meio ambiente. Se perguntado sobre os planos presidenciais, tem uma resposta ensaiada: “Eu já tive a intenção de resgatar os anos de governo que me foram injustamente tirados, mas já ultrapassei esse desejo.”

Fotos: Roberto Castro

Grande dia Na Casa da Dinda, o novo senador se prepara para tomar posse

Collor sabe que precisa de um partido de projeção nacional. Para chegar ao Senado, fez uso da ridícula legislação partidária, ao concorrer em Alagoas pelo PRTB, legenda criada por ele, que só tem 28 filiados, todos amigos ou empregados seus. Agora, quer sair do partido. Já flertou com PMDB, PL e PP, mas não foi recebido com entusiasmo. Está, digamos, noivo do PTB de Roberto Jefferson. Sua idéia: com a perspectiva de o PTB lançar um candidato próprio à Presidência, aumentar a bancada para sete senadores e 30 deputados. Em paralelo, Collor está exigindo de Jefferson que encerre sua briga com o governo. Defende a adesão total a Lula. Como assim? Ora, Collor sabe que o presidente se consolidou como mito entre os mais pobres do Nordeste, sua antiga base eleitoral. Não vai, portanto, trombar de frente com o coração dos descamisados. “Se tem alguma pessoa que poderia encarnar a figura de um anti-Lula, seria eu”, diz Collor. “Mas não acho que isso seja justo. Como eu, Lula amadureceu muito e está fazendo um bom governo.”

Collor acha que tem tempo para tecer sua nova trama – e talvez reescrever sua história. “Tenho oito anos de mandato pela frente; é o bastante para pensar em como ajudar o Brasil”, lembra. Em Brasília, por enquanto, está dormindo na Casa da Dinda. Mas não quer que ninguém saiba disso. Acredita que o endereço é um espectro de lembranças negativas no imaginário dos brasileiros. Ele vai se instalar com a família num local de melhor energia política, um imóvel funcional do Senado, na superquadra 309 Sul, no mesmo apartamento que já foi do falecido senador Teotônio Vilela, mito da resistência à ditadura militar. O imóvel está sendo pintado. Para o gabinete no Congresso, Collor bateu o pé por um espaço nobre. De início, reservaram-lhe por sorteio um gabinete no subsolo, atrás da biblioteca, a 250 passos do plenário. Chiou. Exigiu deferências reservadas a um ex-presidente da República. Então lhe ofereceram um espaço mais nobre, que pertencia a Heloísa Helena, entre Arthur Virgílio e Aloizio Mercadante. Aceitou. Mas, por fim, o diretor-geral do Senado, Agaciel Maia, lhe arrumou algo bem melhor, no 13º andar do Anexo 1 – aquele edifício em forma de H que se tornou um dos símbolos de Brasília. A mulher, Caroline, já foi lá e adorou a vista, espraiada para o Lago Paranoá. É um gabinete igual ao de José Sarney e Tasso Jereissati, só que mais alto, do qual se pode acompanhar os movimentos de Lula entre os palácios do Planalto e da Alvorada. Com 194 metros quadrados, Collor ficará com um terço do espaço. O restante será dividido entre 27 assessores diretos, oito funcionários de carreira, 11 cargos de confiança, com salários entre R$ 6,7 a R$ 9 mil, mais um staff de oito servidores do Estado ao qual os ex-presidentes da República têm direito. Depois de eleito senador, Collor pediu essa regalia ao Supremo. Vindo de um ex-caçador de marajás, mais um paradoxo. Ele quer ter ao seu lado, pagos pelo erário, um general, um coronel, um diplomata e um delegado da Polícia Federal para formar um núcleo de inteligência estratégica particular.

Roberto Castro

Novo homem Na fase atual, o senador Collor tem
tatuagem com o nome da nova mulher, Caroline,
e usa camiseta Nike com botton religioso

É assim, começando a usufruir todas as mordomias do poder, que as lembranças dos tempos da morte em vida vão se apagando. “As mágoas já se foram”, registra Collor. Ele aceita falar do impeachment. “Eu aguardei sozinho a votação no Congresso”, relembra. “Desliguei a televisão, era só silêncio. De repente escutei ao longe gritos de pessoas festejando, os carros saíram à rua buzinando, não queria ninguém por perto.” Os olhos marejam. O momento mais rude, contudo, ocorreu dias depois, quando ele deixou o Palácio do Planalto. “Havia uma multidão esperando para me agredir. Levantei a cabeça, olhei para a frente e andei até o helicóptero. Então pedi ao piloto para sobrevoar uma escola que meu governo estava construindo antes de ir para casa. Era meu último desejo. Ele disse que não iria, que não havia combustível para isso. Foi só naquele instante que eu vi a realidade, que senti que chegara ao fim. Acabou, pensei.” Collor abaixa a cabeça, respira fundo, não deixa que o brilho nos olhos se transforme numa lágrima. “Passei dois anos e meio trancado na Casa da Dinda, preparando minha defesa. Só dormia depois das 6 horas da manhã.” Garante que chegou a pensar várias vezes em se matar. Em 2004, o Supremo Tribunal Federal o inocentou.

Fotos: Joédson Alves - Roberto Castro

A caminhada de volta foi longa e solitária. E os amigos dos tempos de poder já voltaram? “Próxima pergunta, por favor”, responde Collor. Em Brasília, mantiveram-se leais os empresários Paulo Octávio e Luiz Estevão e o colunista social Gilberto Amaral. Os amigos que restaram em Maceió também podem ser contados nos dedos de uma mão. Collor se apegou ao primo Euclydes Mello e ao advogado Cláudio Vieira, ex-secretário particular no Planalto (leia reportagem à pág. 38). Os irmãos Kennedy e Christian Calheiros, empresários de Maceió, também se mantiveram a seu lado. E é só. O casamento com Rosane Malta acabou há dois anos. Ela então se engajou na seita evangélica El Shaddai, se aliou à ex-macumbeira Maria Cecília da Silva e juntas, passaram a contar histórias macabras sobre supostos “trabalhos” encomendados por Collor, com direito a violação de túmulos. “Inventam muita coisa a meu respeito”, rebate Collor, segurando uma medalha de Nossa Senhora de Fátima. “Rosane ainda não se batizou nas águas”, lamenta o diácono da igreja El Shaddai, Roberto Almeida.

Fotos: Roberto Castro

Collor conheceu a atual amada, Caroline, quando mobiliava seu apartamento de solteiro. Ela foi contratada como arquiteta. Sua vida mudou a partir daí. As gêmeas nasceram no ano passado. Diz ele que pretendia se dedicar à nova família. Mas, diante dos apelos e possibilidades da política, registrou um candidato laranja ao Senado, motorista de uma de suas empresas – que renunciou dois dias antes da campanha na tevê. Tomou a vaga do motorista e fez campanha em 28 dias, de helicóptero. Às vésperas de retornar a Brasília, ocorreu um fato curioso no Senado. Ali, no corredor que liga os gabinetes ao plenário, existe uma série de painéis de fotografias que contam momentos épicos da história do Brasil. O último painel retratava o impeachment de Collor. Desapareceu uma semana antes de elle voltar. Foi escondido num depósito a três quilômetros de distância. Os políticos apagaram um trecho da história do Brasil. Collor agradece.

Colaboraram: Hugo Marques e Rodrigo Rangel