18/08/2004 - 10:00
Aos 69 anos, o ex-presidente da Câmara
dos Deputados conserva hábitos simples,
como caminhar nas ruas de Porto Alegre.
Mora no mesmo apartamento de um bairro
de classe média, na capital gaúcha. Mas abandonou o gel para assentar os cabelos.
O homem que “não quis ser cúmplice da
própria destruição” concedeu esta entrevista a ISTOÉ na quarta-feira 11.
ISTOÉ – A notícia sobre a movimentação de
US$ 1 milhão foi decisiva para a sua cassação?
Ibsen Pinheiro – Antes de tudo, foi uma surpresa como esta suposta informação alcançou tal repercussão em veículos de grande circulação. Sempre soube que não havia esses recursos – nem em dólares, nem em cruzados, nem em cruzeiros. Naquele momento, não havia o necessário e indispensável espaço para a prudência, para a avaliação criteriosa, e, consequentemente, a irresponsabilidade tinha espaço para crescer. É só o que pode explicar como prosperou algo sem o menor apoio na verdade. Nenhuma acusação formal me foi feita, eu não tinha uma emenda fraudada no Orçamento, qualquer conduta desabonadora. A única coisa que me foi atribuída era ter uma movimentação bancária superior às minhas posses.
ISTOÉ – E os US$ 881 mil, de onde surgiram?
Ibsen – Na ocasião, não soube a que atribuir. Só quando o jornalista
Luís Costa Pinto me deu o seu depoimento, antes de um almoço em
Curitiba, é que eu tive a causa concreta. Antes, eu não podia atinar como
surgira esse tipo de suposta informação.
ISTOÉ – E as demais acusações da época (US$ 35 mil recebidos de Genebaldo Correia e fotos com anões em uma ilha grega) ajudaram?
Ibsen – Voltaire tem uma definição muito interessante. Diz que a primeira infâmia contra alguém é rejeitada. A segunda arranha e a terceira destrói. No quadro que se criou, as imputações sem provas, sem nenhum conteúdo, produziam este efeito. Mas aquele quadro se criou. Uma foto junto com uma acusação de movimentação financeira desproporcional passava para o imaginário das pessoas que o ex-presidente da Câmara devia ser responsável por tudo de errado que acontecesse. Isso no imaginário das pessoas dispensava a necessidade de provas. Bastava a afirmação. Chegou a um ponto que não precisava nem afirmação, bastava a insinuação. Eu disse naquela ocasião algo que eu posso repetir hoje: nunca tive a graça de uma acusação. O próprio relatório da CPI dizia: “A denúncia inicial não restou provada.” Nos processos políticos, o ônus da prova se inverte. É o acusado que precisa provar uma, duas, três, quatro vezes. Passei por processo marcado pela ligeireza, característico dos processos políticos.
ISTOÉ – O sr. levou à CPI documentação de uma auditoria referente ao erro
do tal US$ 1 milhão?
Ibsen – Levei e me foi informado que ela seria desconsiderada, porque não tinha
tido o acompanhamento da CPI. Uma auditoria de uma qualidade inquestionável, feita pela empresa Trevisan, uma das mais acreditadas do País. Me perguntaram depois: “Por que você não deu esclarecimentos?” Eu dei, o que não havia era
espaço para sua repercussão.
ISTOÉ – Quem desconsiderou a auditoria?
Ibsen – Não sei especificamente e não acho que isso tenha importância. Não tenho o espírito de cobrar contas. Passados dez anos, lanço para trás um olhar que não disfarça a amargura que senti, mas é um olhar também de quem soube vencer aquele quadro e atravessá-lo sem ódio. Aprendi que o ódio faz mal ao hospedeiro, nunca ao seu alvo. O ódio é um veneno que faz mal a quem o agasalha. Depois destes dez anos eu tive, primeiro, de me impor silêncio; segundo, retomar minha vida. Naquela manhã dramática do dia seguinte à cassação, quando me dava
conta de que quem sente vergonha não é quem faz coisas vergonhosas. Sente vergonha quem tem vergonha. Aprendi também que a consciência que dói é a limpa. Consciência suja seguramente não dói. A limpa dói. Se você atravessa um episódio desse e consegue proteger-se da amargura, do ressentimento e do ódio, tem chance de sair dele melhor do que entrou.
ISTOÉ – O sr. conversou com o relator (Roberto Magalhães) sobre o erro?
Ibsen – Não, salvo para exibir a ele e ao presidente da CPI (Jarbas Passarinho) o passaporte que me foi exigido. Eu tomei duas decisões que alguns até hoje me dizem que foram fatais. Primeiro, não pedi o voto de nenhum deputado a meu
favor. Não há um parlamentar que possa dizer que eu fui ao seu gabinete fazer um apelo pessoal. Eu tinha a seguinte convicção: eu posso ser cassado, posso ser destruído, mas não serei cúmplice da minha destruição. Então, não vou cometer a humilhação de pedir que violem suas convicções para votar por coleguismo ou por companheirismo. A segunda decisão que tomei: eu não vou renunciar. Eu achava que poderia ser destruído de fora para dentro, como fui destruído politicamente, mas eu não seria cúmplice da minha própria destruição. Não fui a nenhum gabinete pedir ‘me tirem dessa’. O que eu pedi foi da tribuna. Expus a verdade, mas os juízes eram meus pares e eu deveria acatar o resultado, guardar a amargura comigo e confiar que o tempo e os fatos subsequentes me reparariam.
ISTOÉ – Como foi sua volta ao Rio Grande do Sul. O sr. chorou, dormiu, pensava em quê?
Ibsen – Eu tenho uma dificuldade, da qual não me orgulho, que é não chorar de tristeza. A alegria me faz chorar. Uma vitória do meu time, da seleção, um gesto de humanidade que surge de uma fonte inesperada – às vezes, as lágrimas me cortam a voz. De tristeza não sei chorar, sei ficar triste. Viajei com minha mulher, Laila, a Porto Alegre para retomar a minha vida e me apresentar ao Ministério Público. No dia seguinte, pela manhã, me levantei quase sem ter dormido e, depois de tomar banho, fiz a barba, escolhi um terno e a gravata. Peguei minha pasta, caminhei pela rua da Praia, no centro da cidade, para me apresentar ao trabalho. Eu via no olho das pessoas alguns sentimentos. Majoritariamente curiosidade, depois comiseração e, em menor grau, solidariedade. Mas uma coisa, no primeiro momento, significou muito. Não vi deboche, não sofri nenhuma agressão. Tive a intuição de que as pessoas não compreendiam. Tomei uma atitude. Decidi não morrer. Porque a tristeza e a amargura matam. ‘Eu não vou morrer’, dizia.
ISTOÉ – O sr. conhecia Waldomiro Diniz na ocasião?
Ibsen – Nem de nome. Em torno da mesa do restaurante em Curitiba, enquanto esperávamos o ex-deputado Alceni Guerra para o almoço, soube o nome dele na conversa com Luís Costa Pinto. Ali o jornalista me relatou o episódio e, naquele ano, pedi que me desse esse depoimento para o meu livro. Ele o fez com grande integridade, com correção pessoal, por isso lhe sou reconhecido. Sobre Waldomiro, apenas ouvia referências que a CPI tinha um auxiliar ligado às lideranças do PT e que esse auxiliar, por ser bancário, tinha grande trânsito nas documentações bancárias e acesso às lideranças da CPI, mas não sabia nem o nome dele.
ISTOÉ – O sr. acha que houve má-fé de Waldomiro Diniz, que era o braço direito do então deputado José Dirceu. Qual seria o interesse do Dirceu?
Ibsen – Eu não sei se houve má-fé. Não sei se o pior é a má-fé ou a irresponsabilidade, a ligeireza. Às vezes, a má-fé, por ter compromissos com a realidade, tem limites que a irresponsabilidade não tem. Não acho que essas coisas se façam por uma conspiração. Elas se regulam por regras macro. Eu era a vítima ideal. Atingir um ex-presidente da Câmara, um ícone da Casa, significava dar uma dimensão ao episódio que de outra forma não seria alcançada, uma forma de dizer que toda a instituição se comprometeu sem que se precisasse fazer essa afirmação. Sendo eu um deputado de expressão pessoal, mas então sem força política, era a vitima perfeita. Tinha apenas um cargo honorífico, que era a presidência da Comissão de Relações Exteriores. Muito charme, nenhum poder. Pode ter havido algum ódio político. Eu tinha participado meses antes de um processo de grande conflito na Casa, o do impeachment do presidente da República. E também de um processo de cassação de deputado (Jabes Rebelo, cassado por denúncias de envolvimento com o tráfico). Conduzir processos dessa natureza não é exatamente o caminho para ser a miss simpatia de um concurso. Podem ter sido conjugados todos esses fatores. É mais compreensível que imaginar uma conspiração: ‘Vamos atingir esse cara, tirá-lo da carreira política.’ Não se faz vida política com esse maquiavelismo, a despeito de Maquiavel.
ISTOÉ – Mas o sr. sempre disse que tinha expectativa de poder sem tê-lo de fato, tinha sido lançado pré-candidato à Presidência da República.
Ibsen – Pode ter havido um viés político, sim. Sem que signifique que todos agiram imaginando que estavam diante de uma falsidade. Não vou a esse ponto. Até pessoas de boa-fé me atingiram e, eventualmente, votaram pela cassação. Nestes anos recebi muita solidariedade, como recebi quando vivi a própria crise. Muitas vezes fiquei reconhecido até aos que silenciaram. Não é fácil enfrentar uma barragem publicitária e correr o risco de ficar na frente para também ser atropelado. Aqueles que se aproveitaram para pequenas vinganças, eu nem sequer lhes corto o cumprimento. De certa forma é um prazer perceber a aflição que sentem quando lhes dirijo a palavra com serenidade.
ISTOÉ – Como o sr. recebeu o texto do jornalista Luís Costa Pinto?
Ibsen – Este documento me foi passado numa troca de e-mails, onde eu ponderava uma ou outra incorreção de fato ou de data, sem interferir no texto. Trocamos e-mails e este é o texto final dele depois de três ou quatro rodadas. Este texto tem como causa o livro que estou escrevendo sobre o processo todo. O jornalista Luís Costa Pinto, a meu pedido, depôs sobre o fato que ele me relatou em Curitiba. Com grande integridade, ele relata um fato e não poupa nem a si próprio. Ao final, acrescentou que depunha para o livro e autorizava a fazer o uso que me parecesse devido. Não é apenas um fato para a memória, é um fato jornalístico atual, até porque muitos dos atores, ou quase todos, estão vivos e atuantes.
ISTOÉ – Segundo o relato, o então deputado Benito Gama sustentou o erro de forma consciente.
Ibsen – Como parte atingida não sou o julgador mais sereno dessa conduta. Deixo o julgamento à própria consciência dele.
ISTOÉ – Quando sai o livro e quais outras revelações?
Ibsen – O editor está me cobrando. Gostaria de tê-lo terminado em tempo da Feira do Livro de Porto Alegre, em novembro, mas não será possível. Ficará para 2005. Eu gostei do titulo que o Luís Costa Pinto deu ao seu depoimento: ‘O homem que se recusou a morrer.’ Mas não pensei no título ainda, primeiro o conteúdo.
ISTOÉ – O sr. foi vítima de erro jornalístico. O trabalho da imprensa deve
ser limitado?
Ibsen – O que mais me impressionou foi ter havido, antes da publicação, a percepção do erro e ter havido a persistência na informação inverídica. Mas fui jornalista quase toda a minha vida e acredito na liberdade de imprensa. Se a imprensa comete desvios de conduta, só a liberdade de imprensa é capaz de corrigi-los. Pior que o denuncismo é a censura. O denuncismo tem cura, a verdade aparece. Na imprensa censurada, o denuncismo é eterno. Os vícios que a imprensa pratica podem decorrer da liberdade de imprensa, mas não tenho dúvida que os vícios mais graves decorrem da censura. Vivi momentos da censura, como todos, no regime militar, e vimos do que a censura é capaz. Nas ditaduras, os efeitos desses vícios de conduta são eternos, são imutáveis. No regime da liberdade, sempre se tem, no mínimo, a esperança e, no máximo, a convicção de que a liberdade vai oxigenar os fatos e aqueles que não são verdadeiros não sobreviverão. Vejo com preocupação quando se pretende criar um Conselho Federal de Jornalistas, com a função de supostamente orientar e fiscalizar, mas, sem dúvida, ainda que a proposta seja de boa-fé, o conteúdo será do patrulhamento.
ISTOÉ – Gostaria de acrescentar algo?
Ibsen – Nenhum desses episódios que sofri tem o condão de me tornar amargo ou vingativo. Eu os atribuo à natureza do processo político: primeiro, destruir a imagem de seu alvo; segundo, emudecer-lhe a voz. Não que ele não fale, ele fala, mas ninguém o escuta. Dez anos depois, pode ser.