25/08/2004 - 10:00
Para quem conhece a obra de Carlos Reichenbach, cineasta gaúcho radicado na capital paulista, seu 13º longa-metragem Garotas do ABC (Brasil, 2003) – que estréia na sexta-feira 27 em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília – parece uma mistura de Filme demência com Anjos de arrabalde, filmes que ele realizou nos anos 1980. Agora, a ambientação é o cotidiano de tecelãs do ABC, na Grande São Paulo. Mas seu olhar irreverente e notória erudição continuam focando situações que em outras mãos talvez resultassem prosaicas. Na verdade, o que chega às telas é uma soma de quatro argumentos que o diretor escreveu como contemplado da Bolsa Vitae de Artes 1995. A princípio, a intenção de Reichenbach era falar apenas de tecelãs. No entanto, durante as pesquisas de campo feitas pela equipe, constatou-se que seria impossível abordar o mundo do operariado paulistano sem tocar na ferida neonazista que há muito vem se infiltrando nas classes menos favorecidas. Ao final, o universo dos coturnos e da cruz suástica se transformou na espinha dorsal do filme, cujo roteiro final é co-assinado com o escritor Fernando Bonassi.
A diferença entre Garotas do ABC e os outros trabalhos do diretor está na ausência de um protagonista, o que permite uma visão pulverizada. As histórias acontecem em dois blocos principais: o das tecelãs, ao qual pertence Aurélia Schwarzenêga (Michelle Valle) – negra linda, fã do ator e atual governador da Califórnia –, e o comandado por Salesiano de Carvalho (Selton Mello), filhinho de papai que vive planejando atentados a bomba para intensificar a supremacia branca. Enquanto as operárias trabalham duro e sonham com o baile de fim de semana no Salão Democrático, único lugar onde todas se sentem lindas, Fábio (Fernando Pavão), o namorado de Aurélia, e os outros seguidores de Carvalho passam os dias bebendo, jogando bilhar e tramando novas ações fascistas. O choque entre os dois mundos é inevitável e a interface dá-se por meio de um jornalista (Ênio Gonçalves) e de um líder sindical (Dionísio Neto).
Para canalizar as histórias numa única narrativa, Reichenbach selecionou um elenco coeso, que ainda conta com Natália Lorda, Antonio Pitanga, Adriano Stuart e Fafá de Belém, entre outros. Povoado de citações, que vão de Fritz Lang a Glauber Rocha, mais uma vez o diretor aparece no filme à maneira de Alfred Hitchcock, em duas situações. Uma, na capa de um disco chamado Carlão do Acordeão, o rei do forró. Em outra, faz uma ponta como dono de uma fábrica, personagem antes destinado ao cantor e compositor Ivan Lins, que foi impedido por motivos de saúde. Uma curiosidade: a pedido de Reichenbach, o maestro Nelson Ayres, autor da trilha, criou Sam Ray, The Pope of Soul. A voz e as composições são do músico Marcos Levy e o rosto que aparece no pôster no quarto de Aurélia, sua fã, é o de Rui Pires, diretor de produção. Sam Ray é uma mistura dos nomes dos diretores americanos Samuel Fuller e Nicholas Ray, ídolos de Carlão Reichenbach, que também está lançando um CD com três canções do artista inventado.