01/09/2004 - 10:00
É fácil entrar aqui. A cancela se levanta todos os dias, mas, quando se entra, não se sabe que daqui ninguém sai, a não ser visitantes, voluntários e funcionários. Wat Phrabat Nampo, um templo budista em Lop Buri, a 170 quilômetros ao norte de Bangcoc (capital), é o que se pode chamar de “templo dos últimos dias”. Nem os mortos escapam: as cinzas dos corpos cremados geralmente são recusadas pelas famílias e se acumulam num altar, ao lado de uma grande estátua de Buda. Basta dar os primeiros passos para constatar que esse lugar não se parece com nenhum dos templos budistas espalhados pelo mundo. O templo propriamente dito, onde moram os monges, fica no alto da colina, longe da vista. O lugar é quase uma cidade, com um museu, auditórios e salas de exposições. Nos jardins há grandes letras de concreto “HIV +” e esculturas feitas com cinzas de pacientes cremados. Elas mostram gente morrendo, sofrimento e dor. No momento em que passo por aqui, 210 pessoas estão esperando a morte chegar. Além disso, todos os 16 monges que vivem no templo, à exceção do abade, também estão contaminados com o vírus HIV.
O coração de Wat Phrabat Nampo é o pavilhão número 1. É onde ficam os pacientes terminais de Aids vindos de toda a Tailândia. Muitos deles foram abandonados na porta pelas famílias, que nem esperam alguém vir buscar o doente. Alguns saem correndo, para nunca mais voltar. Apesar disso, o local é o mais limpo e organizado que já vi nas minhas andanças pelo Terceiro Mundo. Comparado com hospitais do Camboja, da Birmânia, das Filipinas e do Timor Leste, ele seria considerado luxuoso. Cada paciente tem seu leito e um ventilador – o calor aqui é insuportável. Segundo um funcionário, a fila para entrar no hospital do templo é de mais de mil pessoas. A maioria dos hospitais da Tailândia não aceita doentes com Aids, num país que, segundo as estatísticas, tem cerca de um milhão de soropositivos. “O problema é que as pessoas só vão fazer o teste quando têm os sintomas da doença. Muitos homens desconfiam, mas suas mulheres ou namoradas não sabem que estão contaminadas. A quase totalidade das mulheres que estão aqui foi contaminada pelos maridos, que frequentavam prostitutas. Então, podemos acrescentar dois, talvez quatro milhões de pessoas infectadas com o HIV”, diz o médico belga Yves, um dos voluntários do hospital.
Os pacientes de Wat Phrabat Nampo parecem ter saído de um terrível campo da morte. A mesma magreza, o corpo esquelético, os olhos tornados imensos pela pele acima dos ossos. Como a maioria está vestida apenas com uma fralda descartável, o aspecto cadavérico é impressionante. Todos aqui usam máscaras e luvas, menos os doentes e os visitantes. Uma sala envidraçada é reservada aos tuberculosos, que são isolados para evitar que contaminem os demais. Os voluntários é que correm riscos, ao trocar as fraldas dos doentes várias vezes por dia, lavá-los e tratar das feridas. Muitos doentes tossem, vomitam, sangram em cima deles. Mas os voluntários permanentes nunca se impressionam com isso.
Madre Tereza de batina – Em princípio, a visita é livre, mas não se pode fotografar. Um funcionário me acompanha aonde vou para me impedir de fazer fotos. Começo a visita apenas conversando com os pacientes. Meu guia é Michael, um padre americano que morou dez anos no Chile, no tempo da ditadura do general Augusto Pinochet. Ele prestou assistência às famílias dos desaparecidos políticos e participou de muitas manifestações. De padre de passeata, virou uma espécie de Madre Tereza de batina. Faz cinco anos
que Michael está na Tailândia, quatro dos quais dedicados a este templo. Quando pergunto o que faz um padre católico no meio de monges budistas, ele sorri: “Nós somos do mesmo ramo. Entre o nirvana e a vida eterna ou o paraíso, qual é a diferença? A idéia é que há algo além daqui, que tudo não termina com a morte. A minha mensagem é de esperança e de solidariedade humana”, filosofa. Aqui ele não é um padre, mas apenas um ser humano, um voluntário internacional que cuida dos pacientes terminais. Michael fala perfeitamente o tailandês e é tido como a única “pessoa da família” de todos os pacientes, o que eles não se cansam de repetir. O padre troca as fraldas, limpa a pele, passa talco, faz massagens, mas, acima de tudo, conversa com os pacientes e ajuda aqueles que querem fazer exercício ou sair um pouco do pavilhão. Ele me apresenta um por um, explica que sou jornalista e venho do Brasil. “Futebol, café, música” são algumas das respostas que ouço à menção do meu país.
À medida que vou conhecendo as pessoas com um nome e uma história, eles vão deixando de ser pacientes para voltar a ser o que sempre foram: pessoas com uma identidade própria. O funcionário que me vigia quer que os pacientes escondam a cara com as mãos quando eu fotografo. Considero isso indigno. “Por que você não deixa as pessoas decidirem se querem ser fotografadas ou não? Eu nunca tiraria fotos de quem não quer”, argumento. A essa altura, depois de uma boa parte da manhã, todos estão do meu lado: Michael, outros voluntários e os doentes. Minha atitude não é de um paparazzo da morte e todos já sentiram isso. Finalmente, o zeloso funcionário cede.