São 4h13 da madrugada da quarta-feira 25. A reportagem de ISTOÉ se aproxima de um amontoado de cobertores e tralhas “vigiados” por dois cachorros. Era um grupo de homens e mulheres “jogados” na avenida Cruzeiro do Sul, limite entre as zonas norte e central de São Paulo. Ao ouvir o barulho do carro estacionando, um dos moradores de rua desperta, assustado. Em um átimo, todos os que dormiam a seu lado acordam. O olhar é ameaçador, mas revela um indisfarçável pânico. A tensão só se dissipa quando desce do veículo um dos integrantes da Toca de Assis, congregação cristã que presta assistência aos “irmãos” da rua. Desde a madrugada da quinta-feira 19, quando começaram os ataques que mataram seis moradores de rua e deixaram outros nove feridos (leia quadro), esse é o clima entre os mais de dez mil moradores de rua da capital econômica do País. São os esquecidos pela metrópole que concentra 30% do PIB brasileiro e produz desigualdade na mesma proporção que riqueza. Enquanto dormiam, as vítimas foram atacadas com pauladas na cabeça. Indefesas, perderam a única coisa que lhes restava: a vida. Testemunhas acusam quatro homens vestidos de preto que estariam em um carro e uma moto. A polícia trabalha com várias linhas de investigação. Entre os suspeitos estão skinheads – grupos neonazistas que abominam negros e nordestinos –, comerciantes da região, PMs e guardas metropolitanos.

Horas antes e a alguns quilômetros depois do tenso encontro na Cruzeiro
do Sul, o engraxate Expedito Rosa Braz agitava a praça da Sé. Local de acontecimentos memoráveis, a praça agora será lembrada também como
palco de uma tragédia. Ali, dois homens foram massacrados: Antônio Odilon dos Santos e outra vítima, que ainda não foi identificada. Esse é o motivo de o engraxate Braz estar ali. Terno e gravata pretos, sapatos da mesma cor e calça cinza, o homem destoava do figurino do povo da rua. Mas não era a elegância que chamava a atenção. Soltando gritos e brandindo uma vassoura em gestos tresloucados, o ninja da praça desafiava. “Eu não moro na rua, mas é isso que eu farei com os que atacarem meus irmãos”, dizia o homem. A alguns metros dali, quatro viaturas da Polícia Militar acompanhavam o movimento. Após a chacina, o reforço no centro foi uma das medidas adotadas pela Secretaria de Segurança Pública. O massacre gerou troca de acusações entre o governador Geraldo Alckmin e a prefeita Marta Suplicy. O tucano cobra da petista a criação de políticas públicas destinadas a essa parcela da população. Já Marta afirma que a falta de policiamento foi responsável pelos crimes. De qualquer forma, a briga trouxe algum benefício aos que mergulham na miséria das ruas do centro. Dezenas de viaturas circulam a madrugada inteira pela região. Pelo menos, por enquanto.

Mas nem a presença do destemido Braz e o aumento do policiamento tranquilizou os da rua. “Eu ando com uma faca e dois pedaços de pau. Eles não vão tirar a única coisa que eu tenho, que é a minha vida”, ameaça Jefferson Fonseca da Silva, 22 anos. O sem-nada perambula pela praça da Sé e arredores. Além das armas, Silva está tomando outras precauções. Depois dos crimes, só dorme em grupo, em lugares iluminados e com algum movimento. Seu grande sonho é conseguir dinheiro para buscar a mãe, que vive na Bahia. Enquanto Jefferson sonha ir à Boa Terra e alguns mendigos estão trocando o perigoso centro por outras áreas da cidade, Eduardo Campos de Almeida, 30 anos, quer ir mais longe: “Meu sonho é juntar dinheiro e comprar uma passagem só de ida para Cuba. Me contaram que lá não existem mendigos passando fome embaixo das marquises e que a medicina é para todos.” Eduardo não sabe ler nem escrever, mas sabe contar o quanto já viveu na rua. “Pelos meus cálculos, são 16 anos e oito meses.” Sua visão sobre a tragédia é contundente. “Não tenho a menor idéia de quem fez isso. Mas sei que a rua tem várias desgraças. A fome, o frio, o medo, os espancamentos. Os que vivem na rua não valem nada. São considerados lixo. A sociedade nos rejeita”, diz.

Quem passa de madrugada pela região do Mercado Municipal, o famoso Mercadão, no Parque Dom Pedro, depara com a dura realidade descrita pelo homem que acredita que a vida em Cuba é melhor. Ali é área dos homens-palha. Para se aquecer, moradores de rua usam as embalagens de abacaxi dispensadas pelos feirantes como cobertor. O movimento no Mercadão dá uma sensação de segurança aos que dormem ao relento. Porém, nem todos se sentem sossegados. “Os feirantes nos dão proteção. Mesmo assim eu só consigo dormir bem de dia”, diz Fernando Cazé, 37 anos, há um na rua. Ex-presidiário, esse pernambucano de São Bento do Una só deseja uma coisa na vida: “Quero um emprego para poder ganhar dinheiro e assim voltar à minha terra.” Infeliz Cazé. Nem seu querido Pernambuco está livre da barbárie. Na quarta-feira 25, dois homens de rua foram mortos a tiros em Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife.

Porém, antes do sonhado regresso, Cazé dificilmente terá um sono tranquilo. Vai continuar desconfiando de todo carro preto que passar por perto e terá receio até de receber o prato de sopa que mata sua fome. É mais uma vítima de uma sociedade que cria a miséria e os próprios meios brutais de exterminá-la.