O “cardeal dos trabalhadores” não gosta de rótulos, mas foi assim que a imprensa européia o batizou, em novembro do ano passado, quando foi convidado para falar no Parlamento Europeu, a convite do Partido della Sinistra (da esquerda italiana, ex-comunista). O cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Cláudio Hummes, ganhou ainda, na ocasião, uma plaqueta de três centrais sindicais italianas para lembrar o seu comprometimento com a causa operária. É simples, como deve ser um franciscano, e obstinado: filho de lavradores de origem alemã, nascido no Rio Grande do Sul há 70 anos, ele aprendeu cinco línguas e é doutor em filosofia. Nos anos 80, quando era bispo de Santo André, desafiou o regime militar e abriu as portas das igrejas do ABC para os trabalhadores em greve, entre eles um certo Lula, de quem é amigo até hoje. Mas os anos foram passando, e dom Cláudio ganhou fama de conservador, entre outras coisas por alinhar-se à doutrina pregada pelo papa João Paulo II. Por isso, há seis anos, quando assumiu o lugar de dom Paulo Evaristo Arns, viu muita cara feia dos setores progressistas da Igreja. Mas o tempo passou e o cardeal surpreendeu. Com a mesma coragem dos tempos do ABC, dom Cláudio hoje defende os moradores de rua, atacados covardemente em São Paulo, e sem papas na língua cobra dos governantes ações para defendê-los das agressões, tirá-los da sarjeta e combater a praga do desemprego. Um dos nomes mais cotados para substituir João Paulo II, segundo especialistas nos bastidores do Vaticano, dom Cláudio já começa a colher os primeiros frutos de seu principal projeto: o Centro de Atendimento ao Trabalhador (Ceat), criado em abril do ano passado para os que estão mais à margem da sociedade, tentando encaixá-los no exíguo mercado de trabalho e oferecendo apoio psicológico, pedagógico e espiritual. Reservado, dom Cláudio não costuma conceder muitas entrevistas. Mas falou a ISTOÉ na segunda-feira 30, em uma das seis unidades do Ceat em São Paulo, para mostrar que é possível dar dignidade ao excluído e ao desempregado que perdeu a auto-estima. O Ceat já conseguiu encaixar cerca de dez mil pessoas no mercado de trabalho, inclusive moradores de rua, e atendeu um total de 200 mil até agora. Por ser uma iniciativa única no mundo – a parceria da Igreja Católica com governo e sociedade civil para combater o desemprego –, dom Claúdio, que é presidente do conselho consultivo do Ceat, foi chamado para contar esta experiência no Parlamento Europeu e, em 2005, vai estar à frente da organização do primeiro seminário mundial para discutir a falta de trabalho.

ISTOÉ – Os recentes assassinatos dos moradores de rua em São Paulo podem indicar que a intolerância está crescendo no Brasil, a exemplo do que acontece no resto do mundo?
Dom Cláudio Hummes

Não gostaria de fazer comparações com outros países.
Mas o Brasil não é tão intolerante. O brasileiro tem muito coração e capacidade de convivência. Isso porque o Brasil já fez a miscigenação.

ISTOÉ – Mas como explicar esses atos violentos contra os moradores de rua?
Dom Cláudio Hummes

Não é a sociedade que é intolerante, existem grupos de intolerância, que não são numerosos, mas são fortes. No caso dos moradores de rua, a sociedade é desatenta e até certo ponto age como se esse pessoal estivesse incomodando. É possível resgatar essas pessoas. Uma parte pode ser incluída no mercado de trabalho. Os que não têm condições deverão ser assumidos pelo Estado. É preciso educar essas pessoas, ajudá-las a entender que a rua não é a melhor coisa para a dignidade humana. Muitos deles têm medo, querem ficar na rua. O Estado tem que investir nisso, mas não quer porque não dá votos. Todos no poder público estão falhando nisso. Nós, a sociedade, também estamos falhando porque não exigimos isso do Estado. Espero que depois desse episódio vá se fazer alguma coisa. Estive com o governador Geraldo Alckmin e menos formalmente com a Aldaíza Sposati (secretária municipal de Assistência Social) e já foi anunciada a abertura de frentes de trabalho que incluam também moradores de rua. Como já tivemos há dois anos. Só que, depois de seis, nove meses, todos voltaram para a rua. É preciso ter programas que façam o resgate pleno dessas pessoas, que se vá além do oferecimento do trabalho. O segredo é a qualificação profissional, o atendimento psicológico, pedagógico, espiritual, o resgate da auto-estima. É preciso que as autoridades dêem prioridade às pessoas, e não às ruas e às praças.

ISTOÉ – Como combater esses grupos de intolerância?
Dom Cláudio Hummes

Em primeiro lugar, não pode deixar os responsáveis impunes. E depois os meios de comunicação podem ajudar muito conscientizando a sociedade: não se pode ser intolerante e não se pode tolerar os intolerantes.

ISTOÉ – O sr. enfrentou a ditadura militar e ficou ao lado dos trabalhadores em greve no ABC na década de 80, entre eles inclusive Luiz Inácio Lula da Silva. Hoje o seu desafio é muito diferente?
Dom Cláudio Hummes

Muito. Naquela época se lutava contra um regime arbitrário que tirava a voz dos trabalhadores. E também havia a luta por melhores condições de trabalho, de liberdade sindical. Se fazia greve por índices salariais. Nas contas do Delfim Netto (ministro da área econômica no governo militar, hoje deputado federal pelo PP-SP), nem sempre dois mais dois eram quatro. Às vezes dois mais dois eram três. Nossa luta foi vitoriosa. Hoje se luta por emprego. As outras questões ficaram menores. Hoje as pessoas trabalham por qualquer salário, e o sindicalismo perdeu força. Hoje é mais difícil porque a nova ordem econômica mundial, a globalização, não oferece alternativas. É preciso modificar essa nova ordem econômica.

ISTOÉ – Então hoje o povo está pior?
Dom Cláudio Hummes

Mudaram as esperanças e expectativas. Com a chegada do PT ao poder
nos municípios, nos Estados e no plano federal, a esperança cresceu. Esse otimismo no começo
era imediato Há uma parcela que perdeu as esperanças, e talvez isso vá se manifestar
nas próximas eleições. Mas a maioria dos trabalhadores e os pobres têm esperança de
que a médio prazo a situação vai melhorar.

ISTOÉ – O sr. acredita nisso?
Dom Cláudio Hummes

Tenho esperança e ela continua firme. Quando o presidente Lula assumiu, a conjuntura era difícil em termos de credibilidade internacional. Hoje o Brasil está mais consolidado e menos frágil com a política feita exatamente por esse governo. Portanto, é possível o governo ousar um pouco mais nas demandas sociais.

ISTOÉ – O governo já começou a ousar ou não?
Dom Cláudio Hummes

Eu penso que começou a ousar, mas também há coisas questionáveis. Há uma percepção da sociedade de que o governo, para poder
ousar, está manifestando uma certa vontade centralizadora. Deve-se discutir com muito rigor até que ponto uma centralização maior pode ajudar a consolidar o Brasil em termos democráticos, econômicos e no combate à miséria.

ISTOÉ – O sr. se decepcionou com o governo do presidente Lula, que conheceu tão bem nos velhos tempos das greves?
Dom Cláudio Hummes

Não estou decepcionado. Esperava, sim, que as coisas fossem
mais rápidas. Mas eu concordo que era preciso primeiro se consolidar na economia para se poder ousar mais no atendimento das demandas sociais. Eu tenho estado muitas vezes com o Lula e ele sempre diz: eu não posso errar porque, se o Brasil cair, quem vai levantar as esperanças desse povo? E aí estamos nós, com o Ceat, que está na boca das demandas sociais e a maior delas é o emprego, que é a porta para se sair da miséria.

ISTOÉ – Como surgiu a idéia de criar um centro para atender os desempregados?
Dom Cláudio Hummes

O projeto surgiu de uma reavaliação da presença da arquidiocese no município de São Paulo. Realizamos o Seminário da Caridade em 2000 (estudo realizado por várias universidades sobre a realidade social da cidade de São Paulo e a atuação da Igreja Católica). Concluímos que a Igreja poderia fazer mais. O papa João Paulo II também estimulava que a Igreja se renovasse. A arquidiocese tem história longa de presença forte no social, sobretudo com a figura de dom Paulo Evaristo Arns.

ISTOÉ – A pobreza sempre existiu, mas hoje, com a globalização, ela mudou de face?
Dom Cláudio Hummes

A pobreza hoje é mais desumana. Há uma deterioração muito maior, do ponto de vista moral e psicológico. E também preocupações de que os valores se fixaram muito no plano econômico, mas ele sozinho não vai fazer a redenção das pessoas. A sociedade deve ter outros referenciais. As pessoas não se resumem a consumidores. Há os valores familiares, culturais, religiosos, espirituais, que fazem a felicidade e a realização do ser humano.

ISTOÉ – O sr. é franciscano, uma ordem que prega a simplicidade. O sr. não se sente pregando no deserto diante de uma sociedade que hoje valoriza tanto o luxo, a celebridade, o consumismo?
Dom Cláudio Hummes

As pessoas devem entender que é possível ser feliz com muito menos. Vamos enchendo a casa de coisas porque na loja são bonitas e quando chegam em casa entulham e nem são mais tão bonitas. E o vazio continua o mesmo. Eu aconselho as pessoas, no fim de ano, a fazer uma grande revisão no seu guarda- roupa. Dar para os outros aquilo que não usou o ano inteiro, só ocupou espaço. Esse aspecto moral, ético, também precisa ser trabalhado na nossa sociedade. Por isso, temos outros grandes programas, de solidariedade, de visita às famílias, sobretudo das periferias, para atendê-las e ao mesmo tempo levar valores espirituais e religiosos que o povo não pode perder na sua luta pela vida.

ISTOÉ – Esses valores espirituais se perderam?
Dom Cláudio Hummes

A Igreja Católica perdeu 10% de seus fiéis.

ISTOÉ – Para os evangélicos?
Dom Cláudio Hummes

Sim, perdeu para os evangélicos. Mas uma pequena parcela ficou sem religião. O que mostra como nós não conseguimos evangelizar aqueles que nós batizamos. Isso porque nós não estamos chegando lá. Por isso, a forma como atendemos no Ceat não vê o trabalhador apenas como um desempregado, mas como uma pessoa que tem família e uma vida que se deteriorou justamente pela falta de trabalho. Queremos nos diferenciar de outros atendimentos justamente por esse aspecto psicológico, pedagógico, espiritual. Tratamos as pessoas na sua integralidade, oferecendo trabalho ou, ao menos, acompanhamento solidário porque não conseguimos emprego para todos. Falta qualificação, escola. Um país que quer se desenvolver precisa disso. Oferecemos cursos para aperfeiçoamento profissional, e também para que as pessoas se tornem empreendedoras, abram suas cooperativas, em parceria com o Sebrae.

ISTOÉ – Como a exclusão é global, esse trabalho do Ceat não é de formiguinha?
Dom Cláudio Hummes

É um trabalho contra um gigante e que não se resume ao Brasil, faz parte de uma estrutura mundial. Por isso, o Ceat não está trabalhando só aqui no Brasil. Temos um assessor de relações internacionais. Em novembro, fui convidado para falar sobre a experiência do Ceat no Parlamento Europeu, na Comissão Econômica e Social, em Bruxelas, e fomos muito bem acolhidos. Daí surgiu a idéia de realizarmos um seminário internacional para debater o desemprego no mundo. Também tive encontros com centrais sindicais da Itália. Fizemos esse contato para suscitar discussão mais ampla e para receber apoios porque precisamos de recursos. Não podemos depender só do dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador, do governo federal (são R$ 250 mil por mês para o Ceat). Foi o grupo de partidos socialistas europeus que nos convidou para falar no Parlamento Europeu. Eles me conhecem dos tempos do ABC. E conhecem o Lula também. São ainda frutos daquela época. A gente ainda sorri junto, temos uma certa cumplicidade…

ISTOÉ – Depois dessa época de luta contra a ditadura e apoio aos sindicalistas em greve, o sr. ganhou a fama de conservador, de não se ater tanto à questão social, se voltando mais ao espiritual…
Dom Cláudio Hummes

São as etiquetas. Mas eu acho que não mudei nada nesse aspecto. O que aconteceu foi a necessidade de um esforço muito grande na retomada da evangelização e da espiritualidade. Isso eu levei muito a sério, mas não significa
que se fez menos no social.

ISTOÉ – Então o sr. não mudou?
Dom Cláudio Hummes

Não, não. Tanto assim que eu, o Lula e muita gente daquela época somos muito amigos ainda.