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Marco zero: Banda Aceh (Indonésia), devastada, recebe donativos

As notícias do maremoto chegaram à Europa e aos Estados Unidos com uma rapidez jamais vista na história do mundo. Um dos primeiros despachos, em tom pessoal e vindo de Sumatra, na Indonésia, dizia: “No último domingo, pela manhã, ocorreu um terremoto. Olhando para o mar, notei um objeto muito escuro, viajando rumo à praia. À primeira vista, parecia que uma baixa cordilheira de montanhas havia emergido do oceano. Mas eu já sabia que isso não é possível nesta parte da Indonésia. A segunda olhada convenceu-me de que aquele era um imponente cume d’água com vários metros de altura.” O fenômeno, que passou a ser considerado o maior desastre natural da história, matou 36.417 pessoas, fez milhares de feridos e destruiu 167 vilas. Ocorreu em 27 de agosto de 1883. Um “tsunami” (palavra japonesa que designa maremoto) monstruoso, originado com a erupção do vulcão Krakatoa, em Java.

Os tsunamis – aquele provocado por Krakatoa e o de 26 de dezembro de
2004, por um terremoto com epicentro perto da ilha de Sumatra – são irmãos.
Suas raízes genéticas são as periódicas colisões de placas tetônicas, no Sudeste Asiático, considerado o mais espetacular laboratório geológico do mundo. Mas há também outros ingredientes similares no DNA das duas tragédias e nas respostas que as sucederam. Nos primeiros dias de 2005, até mesmo as crianças já sabiam detalhes do tsunami que matou mais de 150 mil pessoas (número que pode dobrar devido às epidemias) e varreu 13 países em dois continentes, Ásia e África. As notícias desta catástrofe chegaram ainda mais rapidamente do que as de 1883. As imagens das vítimas – mais de 500 mil feridos e cinco milhões de desabrigados – comoveram a humanidade numa escala que nenhum chavão demagógico havia conseguido em décadas.
Dadang Tri/Reuters / Julian abram Wainwright/EFE
Horror amenizado: toneladas de suprimentos chegam de navios (foto acima) e de aviões. Mas os corpos ainda enchem necrotérios, como na Tailândia

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Horror amenizado: toneladas de suprimentos chegam de navios (foto acima) e de aviões. Mas os corpos ainda enchem necrotérios, como na Tailândia

Foi o suficiente para que estas mesmas crianças, seus pais, avós, amigos, vizinhos – desde o Bronx nova-iorquino, passando por Roma, Kyoto, Rio de Janeiro e até as paupérrimas Port-au-Prince (Haiti), e Maputo (Moçambique) – passassem a recolher donativos para enviar aos necessitados. Pegue-se um exemplo brasileiro: pela primeira vez na sua história, o escritório regional do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) quebrou uma de suas regras básicas e estabeleceu vias para donativos da população nativa para beneficiar outros povos. “O Unicef Brasil tem uma tradição que é aplicar exclusivamente no país os fundos arrecadados aqui. Mas em função da enorme vontade do povo brasileiro em ajudar, nós abrimos uma exceção e estamos com três operações de coleta. Foi a enorme pressão popular que originou esta mudança”, disse José Afonso Braga, chefe do setor de mobilização de recursos da organização em território nacional, sediada em Brasília. O governo Lula rapidamente enviou 16 toneladas de medicamentos e alimentos para Bangcoc, num avião da Força Aérea. “A ajuda brasileira foi muito bem-vinda e já foi toda distribuída”, disse a ISTOÉ Joana Scholtes, a brasileira representante da ONU na coordenação da emergência na Tailândia. Ela chegara no início de dezembro ao país como enviada do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), mas a tragédia mudou sua função. Enquanto os brasileiros enfiavam as mãos no bolso e nas despensas de casa, os soldados do País que estão em missão de no Haiti eram convocados a ajudar a recolher donativos dos nativos para o socorro às vítimas do maremoto asiático. Um supra-sumo do arquétipo da solidariedade da miséria.

Ao redor do mundo, as coletas foram se multiplicando. Na Suécia, país que teve o maior número de vítimas (52 mortos e 2.322 desaparecidos) proporcionalmente à sua população, o governo prometeu US$ 80 milhões de auxílio humanitário, enquanto a população fazia coletas para engrossar esta quantia. “Crianças estão vendendo chocolate quente nas ruas para ajudar”, diz Goran Greider, editor da publicação Dala-Demokraten. De Lisboa a Ljubljana (capital da Eslovênia) a Europa se reuniu em coletas e, na quarta-feira 5, parou durante três minutos para homenagear os mortos. Nove mil turistas, a maioria europeus, estavam no Sudeste Asiático no dia 26 de dezembro. Noventa e nove desaparecidos e dois mortos – a diplomata Lys Amaro D’Avola e seu filho, Gianluca, dez anos – são brasileiros. No final daquele mesmo dia, durante o encontro de 11 nações doadoras reunidas em Jacarta (capital da Indonésia), a Alemanha prometeu US$ 680 milhões e a Austrália entrou com mais de US$ 800 milhões, batendo recordes. A coleta oficial para as vítimas bateu na casa dos US$ 4 bilhões. Nada mal, ainda que os prejuízos devam chegar a US$ 10 bilhões, segundo o Banco Mundial.

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O desafio agora é a reconstrução e o combate às epidemias que ameaçam os sobreviventes

Interesses – Mas há, certamente, diferenças entre as doações privadas – aquelas feitas por gente com olhos em lágrimas vendo cenas de mortos, destruição e crianças órfãs, pela televisão – e as de grandes corporações e países. Para Jan Egeland, coordenador da operação de emergência da ONU, a maior já feita pela organização, não importa quem está dando o quê. Na semana passada ele disse a ISTOÉ: “Não faço diferenciação sobre a origem do auxílio. Estamos numa emergência e ajuda é ajuda. Todas são bem-vindas.” A princípio, Egeland está certo. Mas é possível e até saudável fazer essa diferenciação. “Tanto no caso do maremoto de Krakatoa quanto no de agora, os interesses econômicos ajudaram a divulgar as notícias da tragédia e a reconstruir comunidades. Os fatores econômicos foram os motores destes auxílios”, diz Simon Winchester, historiador e geólogo, autor do best-seller Krakatoa – o dia em que o mundo explodiu. “Uma coisa é o donativo feito pela população de um país, por gente comum, cujo único objetivo é caritativo. Outra, completamente diferente, é a doação feita por países. Estes têm interesses bem definidos nos auxílios de emergência”, diz Jeffrey Dartyr, especialista em Ásia no Conselho de Segurança Nacional do governo Bill Clinton. “Todos os países doadores têm variados interesses na região. Por exemplo: o Japão depende da Tailândia e da Indonésia para sua indústria terceirizada de autopeças. Os japoneses também têm montadoras de equipamentos eletrônicos nesses países, além do Sri-Lanka e da Índia. Alemanha, Grã-Bretanha, França, China e demais potências seguem o exemplo. Não fosse assim, o socorro repetiria o fiasco ocorrido depois do terremoto que nivelou a região de Bam, no Irã, há exatamente um ano. Logo após o desastre, foi prometido US$ 1,1 bilhão para a reconstrução. Até agora, os iranianos receberam US$ 17,2 milhões”, diz Dartyr.

Com relação aos Estados Unidos, o principal interessado na recuperação da área asiática atingida, o analista Dartyr, explica o retardamento da resposta do governo e antecipa o que vai ocorrer: “Quando uma situação dessas se apresenta, são desarquivados no Pentágono planos de contingência. O que aconteceu é que a Casa Branca mais uma vez reagiu tardiamente, como fez nos atentados de 11 de setembro de 2001. No entanto, também estava esperando pelos planos atualizados do Pentágono. Foi previsto que interesses americanos estavam sob ameaça depois da catástrofe. Vários setores econômicos do país também dependem de recursos daquela região. Por exemplo: aposto que os tênis que calçam os americanos, assim como as bolas de futebol chutadas pelos brasileiros, vão aumentar de preço. A Nike mantém fábricas na Indonésia e em outros países da área. Camisetas nas lojas Gap e Banana Republica também terão aumento, devido à diminuição do fluxo nas fábricas regionais. Isso atinge diretamente os bolsos dos consumidores. Para não dizer nada sobre a óbvia influência na Bolsa de Valores de Wall Street”, diz Dartyr.

Nessa linha de ação, o governo de Washington ainda viu outras possibilidades, boas e ruins. Num cenário de pesadelo, haveria enormes quantidades de pessoas infectadas depois dos maremotos voltando aos Estados Unidos ou imigrando para o país em busca de condições de vida perdidas com o desastre. Como diz Pierre Salignon, diretor da organização Médicos Sem Fronteiras, “as epidemias viajam rapidamente e não precisam de passaporte”. Um cenário de surto de cólera em território americano seria uma tragédia bíblica. A Organização Mundial da Saúde prediz que 150 mil pessoas podem ser infectadas com doenças no Sudeste Asiático.

Contra o fundamentalismo – Já em termos geopolíticos, a presença americana nas áreas afetadas é um presente dos céus. Sob a bandeira da ajuda humanitária, vai desembarcar nas praias asiáticas um enorme exército de americanos que, em outras circunstâncias, seria recebido a bala. Os soldados estarão construindo pontes, no sentido figurado e ao pé da letra. “Pegue-se o exemplo de Aceh, a área mais afetada da Indonésia. Ali existe um movimento separatista muçulmano ortodoxo que começou depois do maremoto provocado pelo Krakatoa”, diz Winchester. Esse movimento islâmico está se radicalizando cada vez mais. Em fevereiro de 2003, o governo de Jacarta foi obrigado a permitir que as cortes desta enorme ilha estabelecessem tribunais baseados na Sha’ria, o conjunto de leis islâmicas. Já se comprovou a presença de militantes dos movimentos radicais fundamentalistas Jemaah Islamiyah, ligado à Al-Qaeda e responsável por atentados na Indonésia.

“No contingente de ajuda americana estarão especialistas de inteligência que vão reconstruir comunidades dentro de moldes favoráveis aos EUA. Vai se estabelecer uma rede de amigos e colaboradores, sobre as ruínas das cidades que serviam de santuário para os militantes muçulmanos”, diz Dartyr. É bom lembrar que a Exxon-Mobil tem interesses importantes em Aceh, rica em petróleo, que estavam ameaçados antes do maremoto. “Os US$ 350 milhões prometidos pelos EUA e mais de US$ 50 milhões oferecidos por grandes corporações são investimentos no futuro”, completa Dartyr.

Outros soldados a desembarcar na Indonésia e no Sri-Lanka são os soldados
de Cristo. Centenas de missionários cristãos ocidentais estão invadindo as áreas para salvar corpos e almas. Até os maremotos, muçulmanos nas duas nações estavam matando cristãos como quem sacrifica cordeiros. Espera-se que a
mão que pega o prato de comida oferecido pelos missionários também aceite a Bíblia que acompanha o menu.