08/09/2004 - 10:00
Entre os dias 30 de agosto e 2 de setembro, Manhattan se transformou num arremedo de máquina do tempo. Neste período, dentro do Madison Square Garden, o tempo ficou
congelado em 11 de setembro de 2001. Nas ruas da cidade, voltou-se a maio de 1968. No ginásio esportivo do Garden, 2.509 delegados (e 2.344 alternativos) republicanos fizeram sua convenção para novamente indicar George W. Bush como seu candidato à eleição presidencial de novembro próximo. E fizeram dos atentados terroristas de 2001 seus maiores cabos eleitorais. Fora dali, centenas de milhares de manifestantes protestavam contra o indicado e sua política nos quatros anos que passou na Casa Branca, num fervor evocativo dos distúrbios de 36 anos atrás. Mas déjà vus, sabe-se, costumam ser farsas. Os republicanos não são donos do legado da tragédia. E seus opositores parecem não entender que, para protestar pela paz, é preciso perturbá-la. As câmeras de tevê são atraídas por sangue e baderna. Como não houve nada disso, foi dado pouco tempo de exposição à malta. George W. Bush fez um discurso populista, cheio de promessas difíceis de ser cumpridas, principalmente no campo econômico. “Eu estou concorrendo à Presidência com um plano claro e positivo para construir um mundo mais seguro e uma América mais positiva”, disse sem especificar. Ele não é um comunicador como seu herói Ronald Reagan. Mesmo assim, subiu nas pesquisas, passou um ponto – e talvez mais que isso – à frente de seu oponente democrata, John F. Kerry, cuja reputação foi massacrada no palco, e as tendências de opinião no país rumavam para o lado republicano.
Num espetáculo cuidadosamente coreografado para a televisão, os republicanos optaram por uma estratégia baseada em quatro pilares. No primeiro dia, usaram as imagens de 11 de setembro, trazendo três parentes de vítimas para falar de seu drama pessoal. Depois delas, um cantor entoou o hino religioso Amazing Grace. Vários delegados entraram em transe, com santos baixando em massa entre a direita religiosa. Depois, o ex-prefeito de Nova York Rudy Giuliani falou de sua experiência naquele dia infame e
agradeceu em profusão ao presidente Bush. “Graças a Deus ele é o nosso presidente”, disse. Apoderava-se, desse modo, dos sentimentos de união
pós-tragédia terrorista. No segundo dia foi a vez de mostrar o lado moderado
do partido, o chamado “conservadorismo compassivo”, lema que ajudou
Bush a ganhar votos em 2000. Para isso chamaram Connan, o bárbaro – aliás, o governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger. Ele exaltou os Estados Unidos, terra de oportunidades para imigrantes como ele. Foi seguido pela primeira-dama, Laura Bush, que interpretou – como sempre – o papel de uma dona-de-casa dos anos 50. O terceiro dia foi dedicado a jogar carne fresca às feras, com o senador democrata pela Geórgia, Zell Miller, virando casaca e denegrindo com meias-verdades e puras mentiras o currículo de Kerry. O astro da noite seria o vice-presidente, Dick Cheney, que completou o serviço de assassinato de caráter. Na quinta-feira 2, o último, foi a vez de o presidente usar o palco central para fazer as promessas de governo num segundo mandato. Pela tevê, parecia que a convenção ocorria no Coliseu de Roma, com a galera delirando diante de leões e condenados. Mas, na realidade, o plenário tinha muitas cadeiras vazias e o clima era soporífero, a ponto de fazer grande parte do público dormir e os jornalistas aproveitarem para receber massagem e manicure gratuitas. Mesmo assim, os militantes republicanos saíram de Nova York certos da vitória.
Ninguém ganhou nada ainda. As próximas cinco semanas até as urnas do dia 2 de novembro prometem o trivial variado de surpresas para os dois candidatos. Principalmente em outubro, quando vão se enfrentar em debates televisionados. “Nas eleições de 1980, o presidente Jimmy Carter e seu opositor Ronald Reagan estavam virtualmente empatados até o debate. Foi a performance de Reagan que lhe valeu a eleição com uma vantagem surpreendente”, diz Andrew Rustnov, do Instituto de Pesquisas Genext. Mas Al Gore, em 2000, mostrou como é difícil ganhar um debate com W. Bush, um piadista simpático, que parece alguém agradável para se dividir uma cervejinha. Até o presidente Lula fez menção positiva de sua empatia. Já o democrata Kerry tem o mesmo nível de carisma de um pepino em conservas, é cerebral e dado a discutir nuances. A dialética hegeliana, definitivamente, não é o forte do eleitorado americano, que prefere ver o mundo da forma simplista proposta pelo atual ocupante da Casa Branca.
No entanto, o eleitorado, que costuma decidir seu voto a partir do bolso, sente o aperto na carteira, principalmente nos Estados que ainda estão em cima do muro e são disputados com fúria pelos candidatos. Uma prova disso foi a manifestação promovida por sindicatos de todo o país, na quarta-feira 1º. Nada menos que 30 quarteirões de Manhattan foram ocupados por trabalhadores convocados pelas centrais sindicais, na marcha intitulada “Pink Slip” (a versão americana do bilhete azul do desemprego). “Temos aqui o equivalente a seis quilômetros de percurso completamente tomado por 150 mil pessoas que detestam a política econômica de Bush. Ninguém aqui se beneficiou dos cortes de impostos. Não fazemos parte da minoria de 2% de milionários que ganhou com estes cortes”, disse a ISTOÉ Ray Waldron, presidente da central sindical AFL-CIO de Minnesota.
As manifestações, na verdade, começaram antes da convenção. No dia 28 de agosto, sábado, cerca de 100 mil pessoas atravessaram a ponte do Brooklyn numa demonstração de apoio ao direito constitucional ao aborto – um anátema na plataforma republicana que seria aprovada dois dias depois por aquele partido. No domingo 29, a maior de todas as marchas – esta pela paz – levou cerca de 250 mil manifestantes a Manhattan. Até então, com exceção da queima de um dragão de papier mâché, em frente ao Garden, poucos incidentes haviam sido registrados, com o número de presos atingindo menos de 200. Conforme os delegados republicanos foram chegando, o clima esquentou. O prefeito Mike Bloomberg oferecia descontos em restaurantes e teatros da Broadway para todos que decidissem largar os cartazes e megafones.
Mas não adiantou. Cerca de 2.000 pessoas foram presas; mesmo assim, o fantástico aparato de segurança não foi capaz de selar o Madison Square
Garden. Em quatro oportunidades – inclusive durante o discurso do presidente
Bush e o do vice Dick Cheney – manifestantes invadiram a convenção gritando slogans contra os donos da festa. No terceiro dia, um grupo de 12 militantes
entrou no plenário e foi agredido por jovens convencionais. “Nos garantiram que este tipo de invasão seria impossível. E agora vemos que não é bem assim. Imagine se um destes idiotas fosse um terrorista, um homem-bomba”, disse a republicana Linda Schrager, 21 anos, depois do imbróglio. Mas a única bomba a explodir foi aquela jogada pelas pesquisas no colo dos democratas, que já anunciavam mudanças na equipe de campanha.