Um menino aparentando dez anos de idade, com a perna ensanguentada, ferido a bala, foi um dos primeiros a escapar, nos braços de um homem. Logo depois dele, veio outro, com um olho estilhaçado, carregado por um soldado. E assim foram saindo dezenas de crianças mutiladas, em pânico, seminuas, muitas quase desmaiando depois de muito tempo sem água nem comida. Era quase uma da tarde da sexta-feira 3 quando teve início o último ato do drama iniciado três dias antes numa escola de Beslan, na Ossétia do Norte (Rússia), ocupada por um grupo de terroristas que fez cerca de 1.200 reféns, 70% deles crianças. Aparentemente, o caos começou quando quatro funcionários do governo russo negociavam a retirada de 20 corpos. Nesse momento, três grandes explosões foram ouvidas e parte do teto da escola desabou. O fogo alastrou-se e alguns reféns, entre eles várias crianças, aproveitaram para fugir. Os terroristas começaram a atirar nas pernas dos
meninos. Não se sabe em que momento as forças de segurança russas
invadiram o prédio – antes ou depois das explosões, que formaram uma cortina de fumaça. Um intenso tiroteio entre policiais e terroristas apavorou ainda mais os familiares que, do lado de fora, esperavam desesperados por notícias. Em pouco tempo, o cheiro de morte pairava no ar. A lembrança do massacre no Teatro de Moscou, em outubro de 2002, quando uma operação de resgate provocou a morte de 170 pessoas, atormentava a memória dos vivos. Aos prantos, mulheres entoavam hinos religiosos acompanhadas por um padre ortodoxo. Enquanto as tropas russas invadiam a escola, alguns pais, transtornados, buscavam romper o cerco estabelecido pelo Serviço de Segurança Interno da Rússia (FSB, ex-KGB) em busca de seus filhos. No início da noite, a confusão ainda era grande e as notícias, incertas, mas já se podia ter a dimensão da tragédia: mais de 200 mortos – entre eles 20 terroristas e cerca de 650 feridos.

Os terroristas invadiram a escola na quarta-feira 1º, no primeiro dia de aula. Alguns alunos, vendo-os encapuzados e vestidos de preto, chegaram a pensar que eles faziam parte de alguma festa a fantasia. O FSB afirmou que havia cerca de 40 terroristas, entre eles um russo, um norte-ossétio e pelo menos nove árabes muçulmanos. Desconhece-se a organização a que eles pertenciam, mas o grupo fez exigências inexequíveis, como a retirada das tropas russas da Chechênia e a libertação dos rebeldes chechenos presos na vizinha república da Ingushétia. O ex-presidente da Ossétia do Norte, Ruslan Aushev, foi um dos mediadores que conseguiu libertar 26 mulheres e crianças no dia anterior ao massacre. “Selvagens!”, foi o resumo de uma refém libertada que, como no filme A escolha de Sofia, pôde levar apenas o caçula porque os terroristas lhe ordenaram que escolhesse só um filho. No final do cerco, alguns rebeldes trocaram suas roupas por trajes civis e, assim, conseguiram levar várias crianças como reféns para o prédio vizinho à escola. Muitas chegaram a ser usadas como escudos humanos. Um cinegrafista da ITV disse que chegou a ver dezenas de corpos empilhados dentro da escola. Helicópteros russos sobrevoaram a região para evitar a fuga dos terroristas remanescentes, que acabaram sendo presos.

Conflitos étnicos – A tragédia trouxe à luz o drama das repúblicas do Cáucaso, uma das regiões mais conflagradas da Rússia depois do colapso do comunismo, em 1991. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, ex-chefe do KGB (polícia política do regime soviético), foi eleito pela primeira vez em 2000 prometendo acabar de vez com a rebelião nacionalista da Chechênia, uma república de maioria muçulmana que proclamou a independência no mesmo ano em que a União Soviética deixou de existir. Putin prometeu ser mais duro ainda que seu antecessor, Bóris Ieltsin, que em 1994 iniciou uma desastrada e sangrenta campanha militar contra a rebelião separatista. A promessa de Putin veio depois de uma série de ataques terroristas contra apartamentos em Moscou e outras cidades russas em 1999 e que foram atribuídos a grupos chechenos.