O Brasil será a China? O modelo não é a vice-campeã olímpica de Atenas, que só teve menos ouro do que os Estados Unidos, mas a campeã mundial em crescimento industrial, com taxas na casa dos 7% ao ano. Desde a manhã de terça-feira 31, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) subiu ao pódio com o índice recorde de 5,7% de crescimento do PIB no segundo trimestre do ano, o maior desde 1996, o governo Lula escancara um sorriso à moda chinesa, mas não quer, nem de longe, encarar o mais recente dilema das autoridades de Pequim: botar o pé no freio para estancar um surto incontrolável de crescimento. Depois de patinar na década de 90 na raia da estagnação e cair no ano passado na vala do crescimento negativo, o Brasil ressurgiu na semana passada, em tom ufanista.

“Viu os números do PIB? Fantástico, fantástico! E ainda vai crescer mais”, gabava-se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no almoço de terça-feira, no Itamaraty, com o presidente moçambicano Joaquim Chissano. “A retomada é mais forte do que todas as expectativas. Isso mostra a vitalidade da economia brasileira”, comemorou o ministro da Fazenda, Antônio Palocci. “O crescimento que estamos vendo agora é mais robusto. Ele se irradia pela estrutura produtiva e já alcança o consumo. Há um ciclo virtuoso na economia”, ecoa o ministro do Planejamento, Guido Mantega.

Depois de meses de dura convivência com juros altos, rigidez orçamentária, caixa baixo, metas implacáveis do FMI e a mão fechada do ministro Palocci, o governo Lula desfraldou a bandeira do otimismo. Mas oposicionistas, empresários e economistas menos entusiasmados não entraram na ola verde-amarela do governo e fizeram a pergunta incômoda de sempre: tudo isso não seria, apenas, uma bolha de crescimento? O Brasil, com uma infra-estrutura capenga de portos, rodovias e ferrovias, não corre o risco de engarrafar suas riquezas nos gargalos da exportação? E o Banco Central? Vai tentar resfriar a demanda aquecida, mais uma vez, com a ducha fria do aumento dos juros? Estas questões dividiram o País em torno de uma dúvida que vai alcançar as eleições municipais de outubro e demarcar o debate dos próximos meses: os números do IBGE refletem um crescimento sustentado, como diz o governo, ou sustentam apenas uma bolha de vida efêmera, como aponta a oposição?

Os dados que mostram a reativação da economia são eloquentes. O crescimento de 5,7% registrado entre abril e junho é a confirmação de uma tendência. No semestre, a expansão alcança 4,2% em relação ao mesmo período de 2003 e, agora, já está claro que o aquecimento da economia, antes confinado ao setor exportador, começa finalmente a alcançar a população. O desemprego cai há três meses consecutivos nas principais capitais brasileiras e o contrário acontece com a massa de salários, que, só em junho, cresceu 7,1% em relação ao mesmo mês do ano passado. Uma pesquisa do Sebrae de São Paulo contabiliza outros efeitos da recuperação: as micro e pequenas empresas de São Paulo criaram 60 mil novas vagas de junho para julho. Para não ser pego no contrapé, o governo mantém uma previsão modesta de crescimento para este ano: 3,8%, mas o mercado financeiro já refez as projeções e aposta em uma expansão entre 4% e 4,3%.

O líder do governo no Senado, economista Aloizio Mercadante, lembra que, durante 20 anos, o País registrou taxas modestas de crescimento, graças a uma “cultura de estagnação” que amarrava a economia: “A gente não podia crescer e diziam que Lula seria um misto de De La Rua e Hugo Chávez. Os números do crescimento colocam o Brasil diante de uma nova agenda, positiva, que nunca conhecemos durante os anos FHC”, diz Mercadante. Ele confia também nos bons indicadores energéticos que afastam o risco de um apagão diante de um aquecimento industrial: “O bom volume de chuvas nas hidrelétricas, o etanol facilitando os transportes, a autonomia na produção de petróleo e a descoberta de novas reservas de gás na bacia de Campos nos dão segurança quanto ao futuro.” O ministro Mantega acrescenta: “Este crescimento se dá num ambiente de equilíbrio fiscal e vigor inédito da balança comercial. Não temos hoje vulnerabilidades que abateram ciclos de crescimento anteriores.”

A oposição, apesar dos números, bate pesado no triunfalismo oficial. “O governo vende ilusão, escondendo o desempenho medíocre da economia”, fulmina o senador Jorge Bornhausen (SC), presidente do PFL, ao acusar o PT de inflar os números, comparando o PIB do segundo trimestre de 2004 com o mesmo período de 2003, ou seja, o fundo do poço da recessão. “O governo manipula números suspeitos para produzir um quadro falso de euforia a 30 dias das eleições. Parece o prometido espetáculo do crescimento, mas é apenas uma bolha eleitoral.” Bornhausen desconfia que o Planalto aguarda apenas o fechamento das urnas de outubro para autorizar o reajuste dos combustíveis e retomar, via Copom, o aumento dos juros. “Vamos viver um cruzadinho”, diz, relembrando a manobra do Plano Cruzado, que marcou o governo Sarney com o ferro quente do estelionato eleitoral. O inchaço numérico que Bornhausen menciona é classificado pelos economistas de “efeito estatístico”, e acontece sempre que se compara um período de pico com outro na vala da recessão. De qualquer forma, em relação ao primeiro trimestre do ano, a expansão foi de 1,5%, superior às previsões do mercado, na casa de 1%. “Não é nenhuma maravilha, considerando as taxas de desemprego altíssimas que estão aí, mas é melhor do que os vôos de galinha do passado”, diz o economista, professor da USP e ex-guru do PT Paulo Nogueira Batista Jr. Quanto ao prognóstico de elevação dos juros, as opiniões se dividem. O Banco Central, seguindo a sua cantilena conservadora, há dois meses lança, por intermédio das atas do Comitê de Política Monetária (Copom) advertências de que há o risco de ser obrigado a subir o custo do dinheiro para manter a inflação dentro da meta de 2005, fixada em 4,5%, podendo chegar a 7%. “As próximas semanas são decisivas. Se os índices de preços não recuarem mais significativamente, acredito que o BC acabará elevando os juros ainda neste mês”, avalia o economista e ex-diretor do Banco Central Sérgio Werlang. Outras previsões do mercado apontam para um aumento em novembro, confirmando a previsão de Bornhausen, ou dezembro. Trata-se de um prognóstico que encontra respaldo em avaliações técnicas dentro do próprio governo. O BC poderia esperar um ou dois meses antes de decidir por uma elevação sem colocar em risco o cumprimento das metas. “Há um aumento nos preços, mas não é nada de tirar o fôlego”, diz Paulo Nogueira. Mas a ameaça do BC de recorrer mais uma vez ao seu cacoete ortodoxo e subir os juros assusta patrões e empregados. “É preciso combater a inflação, mas com mais oferta de produtos”, diz Paulo Godoy, presidente da Abdib, associação que reúne a indústria de base. “A alta dos juros pode ameaçar o processo de crescimento”, alerta o presidente da CUT, Luiz Marinho. “As ameaças do BC já estão fazendo empresas adiarem decisões de investimento para ampliar a produção”, adverte Julio Gomes de Almeida, diretor executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), uma entidade de pesquisa mantida por empresários. “O BC é um terrorista que cria as próprias expectativas”, ironiza o ex-ministro e deputado Delfim Netto (PP-SP), condenando as últimas atas do Copom.

Uma voz poderosa contra juros altos é a do novo presidente da Fiesp, Paulo Skaf, que discutiu o tema em Brasília, semana passada, com o presidente Lula e o ministro Palocci. “Temos que trabalhar com o crescimento sustentado, para que o aumento do PIB permaneça constante, de maneira que o País se desenvolva, gere empregos e qualidade de vida”, disse Skaf, depois de sugerir a Lula que as reuniões do Copom passem a ser bimestrais, e não mais mensais. “Temos que quebrar a corrente de expectativas em torno da alta da inflação e dos juros. Um espaçamento entre cada reunião certamente tiraria das preocupações do País essa dicotomia entre juros x inflação.” Lula gostou da idéia.

Gargalo – Líder da facção que produz quase metade do PIB industrial do Brasil, Skaf nega que este surto seja uma simples bolha de crescimento: “O PIB vai crescer 5% até dezembro, um valor que poderá se repetir em 2005, sem risco de gerar demanda inflacionária.” Para isso, será preciso investir em infra-estrutura para acabar com os gargalos que engarrafam as exportações, abarrotando portos, estradas e ferrovias. Para resolver problemas emergenciais nos principais terminais de exportação do País, Mantega está liberando R$ 48 milhões nos próximos dias, mas há entraves de solução mais lenta, só viáveis com grandes obras. “Sem estradas, portos eficientes e energia, poderemos ter um apagão industrial a partir de 2006”, reconhece o líder do governo no Congresso, senador Fernando Bezerra (PTB-RN), ex-presidente da CNI. Aloizio Mercadante lembra que um navio que sai de um porto brasileiro demora 25 dias para chegar aos Estados Unidos, enquanto um navio chinês leva apenas 12 dias para alcançar o mesmo destino, apesar da distância ser maior. Por isso é importante o PPP, projeto que define as Parcerias Público-Privadas, em que governo e empresários compartilham custos e benefícios de obras de infra-estrutura.

Retrocesso – Mas, em vez de consenso, o PPP transformou-se numa enorme zona de fricção na frente política. Um tucano ilustre do Senado, Tasso Jereissati (PSDB-CE), considerou o projeto um retrocesso à Lei de Responsabilidade Fiscal. O revide do ministro José Dirceu entornou o caldo: “O PSDB tem autoridade moral, depois de oito anos de governo? Eles quase quebraram o BNDES. Falar de fundos de pensão depois dos escândalos da privatização? É muita pretensão…” O líder tucano no Senado, Artur Virgílio (AM), bicou de volta: “Só discuto esse assunto, a partir de agora, com o ministro Palocci e com o Mercadante. O ministro Dirceu necessita de tratamento psiquiátrico.” Mercadante, que atribuiu a fervura às tensões pré-eleitorais, diz que Estados governados por tucanos já possuem versões regionais do PPP e que o projeto federal terá outras salvaguardas para garantir sua lisura. Como o limite de comprometimento de 1% da receita líquida de Estados e municípios. Antes e depois dos votos de outubro, a discussão deverá se travar em torno de questões práticas do crescimento – e não mais pela retórica dos palanques.