22/09/2004 - 10:00
Em Don Quixote, de Miguel de Cervantes, o fidalgo espanhol lança-se sobre a bacia de um barbeiro, afundando-a na cabeça para completar sua armadura enferrujada. Acreditava que o utensílio de lata era o elmo de Mambrino, notável cavaleiro medieval. Alfons Hug, curador da 26ª Bienal de São Paulo – com abertura para convidados no sábado 25, ficando em cartaz até o dia 19 de dezembro –, recorre a essa passagem para ilustrar a transfiguração de objetos banais em signos imantados de significado e poesia. É nesse sentido que ele acredita que o espaço de 30 mil metros quadrados, com obras de 135 artistas de 62 países, é um Território Livre, tema do maior evento do gênero no País e terceiro mais importante do mundo. “Como todo cidadão, o artista está inserido no dia-a-dia. Mas a obra de arte cria um universo paralelo à realidade, muitas vezes antagônico ou utópico”, afirma Hug. “O tema do Território Livre deixa isso bem claro.”
A metáfora da bacia que vira material nobre pela alquimia estética se traduz também no desencanto da curadoria em relação às novas mídias. Ao contrário do que vinha acontecendo nas edições anteriores, neste ano a megamostra reduziu bastante os trabalhos em vídeo e em tecnologias de ponta. Preferiu investir nas instalações, que encara como esculturas ampliadas no espaço – caso do pássaro-avião do chinês Cai Guo Qiang –, e na pintura, suporte de um quinto dos artistas. “Os grandes países industrializados, como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, estão apostando na pintura e no desenho. Pode ser uma coincidência histórica, mas existe algo mais atrás disso.” Para provar sua tese, Hug trouxe dois pintores de primeira – o belga Luc Tuymans, responsável por telas esmaecidas e aquareladas, e o alemão Neo Rauch, com cenas carregadas de inquietação. Em Konvoi (2003), por exemplo, Rauch justapõe lances bélicos em clima de propaganda antiga. Dividida por linguagens, a mostra concentra as pinturas no terceiro andar, generosamente iluminado pelas vidraças do prédio, abertas para o verde do Parque do Ibirapuera no requintado projeto arquitetônico de Isay Weinfeld.
Descanso – Até chegar ao topo, o visitante tem paradas obrigatórias ao cruzar com a jangada colorida de Artur Barrio, o realejo trazendo mensagens colhidas na rua pela carioca Rosana Palazyan e o elefante e o tigre empalhados do chinês Huang Yong
Ping. Das cenas de destruição do estoque inteiro de um supermercado no vídeo Pulverous, do holandês Aernout Mik, à sessão de circuncisão adulta do búlgaro convertido ao islamismo Rassim em Corrections 2, é bom descansar diante das árvores que balançam os galhos e as vagens secas do coletivo carioca Chelpa Ferro. Esse trajeto já prova a clara aposta no novo, em detrimento dos antigos núcleos históricos. Reafirma-se assim o compromisso da Bienal em mostrar a arte contemporânea e em revelar nomes que estão despontando com força e consistência. Caso do paulista Thiago Bortolozzo e sua passarela rosa que avança para fora do prédio. O crítico e curador Tadeu Chiarelli aplaude a ousadia. “É importante dar espaço para quem está sedimentando a poética. É melhor que fazer mostras caretas de Picasso.”
Portanto, mais uma vez estarão ausentes os hors-concours da história da arte,
como Munch, Van Gogh e Bacon, só para citar alguns dos artistas que ocupavam o espaço museológico e climatizado, ironizado pela imprensa estrangeira como sala vip. “Entre as 50 bienais que existem, nenhuma tem núcleo histórico”, afirma Hug, que já visitou cerca de 35 delas. “Bienal é sinônimo de arte contemporânea. Para não dizer arte contemporânea emergente.” Não pense, porém, que o evento, orçado em R$ 17 milhões, tenha se tornado um salão de artes internacional. O crítico e curador Agnaldo Farias adverte para os juízos apressados. “Na Bienal de 1979, tinha Beuys e ninguém o conhecia. Somos mal informados. É uma tristeza. Se cotejar os nomes com as Bienais de Veneza e a Documenta de Kassel, identificam-se artistas com muito tempo de estrada.”
De fato, pode-se contar mais de uma dezena de participantes com trajetória consolidada, caso do inglês Mike Nelson, com uma fantástica intervenção no segundo andar, e do fotógrafo alemão Thomas Struth, que vem com uma série de 15 prints em grande formato, feitas ano passado no Peru. Inspiradas nas paisagens românticas do pintor Caspar David Friederich, fotos como Hazienda Rio Palpa jogam com espaços amplos da natureza, convidando a um olhar contemplativo. Proposta semelhante à do brasileiro Caio Reisewitz na série Desocupado, feita em grande formato. Outro artista já conhecido do circuito de bienais é o já citado Cai Guo Qiang, que há cinco anos ganhou o prêmio da Bienal de Veneza com esculturas de terracota bastante críticas à Revolução Cultural. Qiang planejava mostrar em São Paulo mais uma de suas Exploding tower, torres feitas de bambu, papel chinês e fogos de artifício, que explodem e se autodestroem por meio de chips. Mas preferiu mostrar a escultura Uneasy bird, um pássaro-avião de 560 kg, feito de um emaranhado de vime chileno e vime nacional, atados por cipó e bambu.
Com nove metros de cumprimento e seis metros de envergadura, o objeto se equilibra a cinco metros de altura. De seu interior, saem centenas de objetos perfuro-contundentes, termo de navegação aérea para tesouras, facas, canivetes, alicates e outros utensílios metálicos. Qiang queria objetos confiscados nos aeroportos paulistanos, mas a Infraero não concordou em liberar. “Este pássaro-avião reflete o mundo mergulhado em medo, desconforto e obsessão por segurança”, afirmou. O professor e crítico Teixeira Coelho aconselha a prestar bastante atenção não apenas na obra de Qiang, selecionado com uma sala especial, mas em toda a representação chinesa. “Na Bienal passada, eles eram os poucos que tinham um certo impacto. Os chineses tem uma força de imagem e das emoções, lidam com coisas essenciais como a dor e a morte, ao contrário da arte ocidental, que partiu para equações rarefeitas.”
Bolachas – Impossível não ter a atenção desviada para as outras obras chinesas. Huang Yong Ping trouxe a escultura Le 11 juin 2002 cauchemar de George V (2002), crítica ao colonialismo sob a forma de um elefante empalhado carregando um baú, ao qual se agarra um tigre. Com a mesma ousadia, Song Dong criou um mapa-múndi com biscoitos em Eating the world (2004). O público pode comer as bolachas. Próximo dos chineses, se impõe a rampa de Thiago Bortolozzo, chamada Vital Brasil .“O desenho tem a ver com as passarelas dos projetos de Niemeyer”, explica o artista de 28 anos. “A partir da escritura permanente do prédio, criei uma estrutura provisória com referência na construção civil, que pode ser uma obra inacabada ou abandonada.” Com o mesmo impacto, destaca-se a escultura sem nome do veterano Ivens Machado, feita de toras de eucalipto. Parecida com um desenho geológico, a obra atinge cinco metros em seu arco maior. “Trabalho com a idéia de empilhamento e acumulação”, explica Machado. “É uma construção abstrata para provocar emoção e reação sensorial. São planos de cor, alguns mais claros e outros mais avermelhados, formados pelas madeiras que eu pedi para ficar ao tempo.” Um dos grandes artistas brasileiros da segunda metade do século, Machado foi escolhido como o representante oficial do País na Bienal. Nada mais justo. Sua obra está na origem da produção tridimensional contemporânea, segundo Hug, o grande traço da arte brasileira atual.