A verve do jornalista e escritor Joel Silveira é afiada. Foi cultivada em um tempo em que os intelectuais tinham mais orgulho em conquistar desafetos do que aliados. Algo bem diferente da pasmaceira politicamente correta de hoje. “Outro dia li a crítica de um livro e ao fim não sabia se o cabra tinha gostado ou não. Ficou naquilo, não queria elogiar, mas também não queria atacar”, critica. Joel não, é uma víbora, segundo definiu Assis Chateaubriand. Também Manuel Bandeira fez-lhe justiça e descreveu seu estilo como “uma punhalada que só dói quando a ferida esfria”. Prestes a completar 86 anos, este sergipano continua mordaz. Sua biblioteca de 15 mil livros tornou-se inútil, já que não pode mais ler por causa da catarata. A locomoção também é difícil, pois é vítima de uma doença misteriosa que fez inchar suas pernas. Mas o atual posto de observação de onde acompanha o mundo, a poltrona de seu apartamento em Copacabana, em frente da tevê, é suficiente para render material de novas críticas, que junta às antigas. “Vejo telejornais e documentários. Tem muita porcaria: Clodovil, Hebe, Ratinho e esse abominável João Kleber.” Sua especialidade é mesmo a história, já que viu muitos dos fatos mais relevantes das últimas décadas acontecerem bem em frente dos seus olhos. Nesta entrevista a ISTOÉ, Joel fala do livro A feijoada que derrubou o poder, que será lançado em outubro, em que torna risíveis os comandantes militares do governo João Goulart, completamente desinformados quanto ao golpe que se avizinhava. Ele lembra seus encontros com Getúlio Vargas e Olga Benário. Desanca a Coluna Prestes, que trata como um mero passeio, e diz que a obra de Jorge Amado – de quem foi amigo – é uma porcaria. Recorda também sua experiência na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Nos dias de hoje confessa-se decepcionado com o governo Lula. Depois de décadas de atuação no semanário Diretrizes, nos Diários Associados, na revista Manchete e em outras publicações, o balanço que o jornalista faz sobre a vida nacional é desalentador: “O Brasil é uma farsa.” Como sempre, Joel não faz por menos.

ISTOÉ – De que trata o livro A feijoada que derrubou o poder?
Joel Silveira

Esteve aqui em casa o Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, perguntando se eu tinha algo inédito. Ele levou cinco quilos de papel e fizeram uma seleção. Primeiro saiu A milésima segunda noite da avenida Paulista e agora vai sair este, A feijoada que derrubou o poder. É a reportagem sobre uma famosa feijoada organizada uma semana antes da revolução de 64 pelo João Pinheiro Neto, que era ministro do Trabalho do Jango e encarregado da reforma agrária. Ele fez a reunião na casa dele, em Copacabana. Estava presente todo o alto escalão militar do Jango: generais, brigadeiros, almirantes e todo o seu suporte político. Só não foi o próprio Jango, mas estava o (Leonel) Brizola. Fomos convidados para essa feijoada eu, Otto Lara Rezende e vários jornalistas. Eu chegava para um general e comentava que a revolução estava prestes a explodir. Aí o general comentava: “Fique tranquilo, jornalista. Não vão fazer nada, o Exército está conosco.” Falava a mesma coisa com o ministro da Aeronáutica e ele: “Se os aviões deles subirem, não descem.” O ministro da Marinha a mesma coisa, estavam todos empolgados. Quatro dias depois, aconteceu o que todos sabem. Ou seja, os ministros militares não sabiam de nada, estavam pessimamente informados. Eu e os outros jornalistas sabíamos mais do que eles. Essa é uma das histórias do livro.

ISTOÉ – O sr. acompanhou de perto vários governos. Que avaliação faz de Getúlio Vargas, tão homenageado agora no cinquentenário de sua morte?
Joel Silveira

Eu vi Getúlio pela primeira vez em 1938, já ditador, na inauguração do primeiro trem elétrico, na Central do Brasil. Fui cobrir a solenidade. Havia o aparato da Polícia Especial, criada especialmente para defender Getúlio. Eram mastodontes brutais, a Gestapo dele. Tentei me aproximar do presidente e levei uma cotovelada que me fraturou uma costela. No segundo encontro, ele estava prestes a cair. Tinha acontecido o atentado da rua Toneleros, os militares já tinham dado um ultimato. Quinze dias antes do suicídio, consegui uma permissão para entrevistar Getúlio, que me recebeu no Palácio do Catete. A primeira impressão que tive dele foi de limpeza, limpeza exterior. O presidente vestia um terno de linho branco imaculado, a camisa branca, bem penteado, cheirando a lavanda inglesa. Mas era muito pequenininho. Me recebeu com toda a gentileza: “Como vai, doutor Silveira?” Eu disse que não era doutor, tinha cursado apenas até o primeiro ano de direito e depois tive de trabalhar. A resposta dele eu nunca mais esqueci: “Como diziam meus professores, os frades de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, doutor é aquele que é douto em alguma coisa. O senhor é douto em jornalismo.” Era um filho da mãe (risos). Passei-lhe um questionário, a entrevista. Ele leu aquilo e transmudou-se, o rosto risonho ganhou olhos fuzilantes. Jogou o papel na mesa e disse que eu tratasse da entrevista com o doutor Lourival Fontes (diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda). Levantou-se, nem me estendeu a mão, virou as costas e foi embora.

ISTOÉ – Qual é o saldo daquele período?
Joel Silveira

Tenho por Getúlio até hoje uma antipatia profunda. Mas acho que se vê melhor as coisas quando se está longe. A minha perspectiva hoje a respeito dele mudou muito. Continuo a considerar que foi um tirano, um ditador feroz. Mas deve-se reconhecer em Getúlio o homem que mudou a situação do trabalhador brasileiro. Instituiu o salário mínimo, a carteira profissional, as oito horas de trabalho, as férias remuneradas. Antes, o operário não tinha direito a nada. Ao mesmo tempo, deu início à industrialização do Brasil, com Volta Redonda. Getúlio teve uma qualidade rara em um governante brasileiro (e olhe que quem fala aqui é um inimigo seu): era profundamente honesto. Vivia do ordenado dele.

ISTOÉ – O sr. acompanhou de perto o caso Olga?
Joel Silveira

Conheci Olga pessoalmente, quando ela foi apresentada à imprensa. Era uma mulher lindíssima. A turma de Getúlio e o pessoal de Olga eram iguais na sua dureza. Tanto assim que acabaram se unindo. Não entendo como (Luiz Carlos) Prestes pôde apoiar Getúlio depois. Eu estava na primeira entrevista de Prestes depois de libertado. Todo mundo estranhou que um homem que tinha passado dez anos na cadeia, sofrendo o que ele sofreu nas mãos de Filinto Müller, apoiasse Getúlio. Ele alegou que o ditador tinha um projeto nacional, criaria a siderúrgica de Volta Redonda, e ele não poderia apoiar outro candidato. A mim não convenceu. Quando voltei da guerra, consegui uma entrevista com Prestes. Fui ao seu encontro com a cabeça cheia do mito do Cavaleiro da Esperança. Ele me perguntou se era eu que tinha voltado da guerra. Respondi que sim e Prestes começou a falar sobre o Exército brasileiro como se fosse ele quem tivesse estado na guerra. Não fiz uma pergunta sequer. O mito acabou ali. Analisando bem hoje, o que foi essa Coluna Prestes? Não foi nada, não combateu sequer Lampião. Passearam por aí e no fim um foi para a Bolívia, outro foi para a Argentina e só conseguiram se defender do governo. Não realizaram nada.

ISTOÉ – Quanto tempo o sr. passou na guerra? Onde esteve?
Joel Silveira

Estive no front nove meses e 11 dias. Passei em várias cidades italianas, de Nápoles para cima. O correspondente de guerra de hoje pode cobrir o conflito do bar do hotel. Naquele tempo era preciso acompanhar as tropas, o jornalista era como um soldado, estava lá na frente com eles. Era um trabalho terrível. Era risco verdadeiro. Escapei de morrer na cidade de Gajomontano por um estilhaço de granada. Um colega levou um tiro na mão, teve de fazer uma cirurgia. A guerra é uma coisa horrorosa. O pior não é propriamente o combate. O pior é por onde a guerra passa, o que ela deixa para trás. É a subversão de todos os valores. A gente vê um pai entregando a filha por uma barra de chocolate, uma coisa horrorosa.

ISTOÉ – Entre as personalidades que o sr. conheceu, quais as que mais o marcaram?
Joel Silveira

Fui muito amigo do Jânio Quadros. Tinha esperança de que ele fizesse um bom governo, mas fez aquela patifaria de renunciar. Depois que saiu do poder me aproximei dele. Sempre que perguntava por que tinha renunciado, Jânio dava aquela interpretação de que “as forças ocultas não me deixaram governar”. No meu entender, a gota d’água foi outra. Ele recebeu um dia uma informação de que dona Eloá, sua mulher, ia ser intimada a depor. Uma sacanagem do Congresso. Você sabe que em Brasília não se pode construir nada sem que o Oscar (Niemeyer) seja consultado. No Alvorada havia muitos pombos e dona Eloá mandou fazer um pombal nos fundos. Pronto. O Congresso decidiu que ela deveria ser intimada. Jânio soube disso e jamais permitiria que ela passasse por isso. No meu entender, essa foi a gota d’água para sua renúncia.

ISTOÉ – E na área da cultura?
Joel Silveira

Admiro muito o Graciliano Ramos. O Brasil tem somente dois grandes autores, dignos de serem chamados de escritores: Machado de Assis e Graciliano Ramos. O resto é o resto. Conversava muito com Graciliano, sempre amargo, gostava muito de uma cachacinha. Era uma figura fabulosa. Depois da morte dele, entramos na entressafra literária. Há um ou outro que tenha publicado um bom livro, mas não um conjunto de obras como tinham Graciliano, Machado de Assis, José Lins do Rêgo. Jorge Amado não. Jorge Amado é uma porcaria, sempre foi. Fui amigo do Jorge, depois rompemos. Não gostava da sua maneira de agir, ele não era imoral, era amoral. Lembro de uma história muito engraçada. Estávamos Graciliano e eu na Livraria José Olympio, quando era na rua do Ouvidor. Chegou o Jorge Amado e o Graciliano disse: “Ô Jorge, você tem uma imaginação fabulosa, por que não aprende a ler, a escrever? Por que não vai para uma escola pública?” Eu achei engraçadíssimo. Graciliano era muito perverso. Um dia dei um conto meu para que ele fizesse uma avaliação. Começou a ler, aquele cigarro na boca, leu, leu e depois fez assim (imita o gesto de rasgar em pedacinhos uma folha de papel). Rasgou de uma forma que eu não pude nem emendar. Não disse uma palavra e depois me convidou: “Vamos ali fora beber uma cachacinha?” E não falou mais no assunto. Uns quatro, cinco anos depois, me encontrei com ele num almoço e eu o abordei: “Mas, Graciliano, e aquele conto que eu dei para você ler, você nunca me fez a crítica.” Ele então disse: “Horroroso. Horroroso.” (gargalhadas)

ISTOÉ – Como observador privilegiado da vida nacional, acha que o Brasil está progredindo?
Joel Silveira

O Brasil é uma farsa. É uma farsa democrática porque não é uma democracia. Não é democrático que um presidente edite todos os dias uma medida provisória. Se temos uma Constituição, obedeça. Mas como os artigos constitucionais não lhe servem, então tome medida provisória! O Lula com dois anos de governo já editou mais de 200 medidas provisórias, como fazia o Fernando Henrique Cardoso. A democracia racial é outra farsa. Quantos generais negros você conhece? Quantos negros há no Congresso? Quantos presidentes de empresas são negros? A economia também é uma farsa. Por muito tempo nos orgulhávamos de ser a oitava economia do mundo. Uma economia que só beneficia uma minoria, talvez 30 mil pessoas numa população de 180 milhões. A concentração de renda no Brasil chega a ser obscena. Nada mais cruel e sovina do que o empresariado brasileiro, o banqueiro brasileiro. De benefício ao trabalhador só dão o mínimo que a lei obriga. A elite brasileira é essencialmente míope. É como aquela frase de Luiz XIV: “Depois de mim, o dilúvio.” Não há solução enquanto não se resolver esse problema da divisão da renda, o que eu acho dificílimo porque a elite não abre mão de jeito nenhum. O povo brasileiro é passivo, não reage.