29/09/2004 - 10:00
Após ser expulso de Alexandria, no Egito, devido a atividades esquerdistas, o colecionador Arturo Schwarz estabeleceu-se no final dos anos 1940 em Milão, na Itália, terra de sua mãe. Na época dono de uma livraria, Schwarz – hoje com 80 anos – já cultivava uma fértil correspondência com artistas surrealistas como André Breton. Natural, então, que travasse posteriormente conhecimento com o dadaísta Marcel Duchamp, iniciando uma coleção hoje considerada a mais importante sobre o assunto. Um terço das 750 obras doadas pelo próprio Schwarz ao Museu de Israel em 1998 chega a São Paulo depois de passar pelo Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba) e pelo Museu Oscar Niemeyer de Curitiba. Sonhando de olhos abertos – dadá e surrealismo na coleção de Vera e Arturo Schwarz, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, reúne 234 trabalhos de 83 artistas ligados aos dois movimentos, como os já citados Breton e Duchamp, além de Man Ray, Salvador Dalí, Max Ernst, Joan Miró, Tristan Tzara, Jean Arp, Francis Picabia e Kurt Schwitters. Comparecem também obras consideradas precursoras de mestres como Francisco Goya, Paul Gauguin e William Blake, fotos de Lewis Carroll e publicações reunidas por Schwarz. Junto com a mostra, outras importantes acontecem na cidade, marcando a fervilhante temporada aberta com a 26ª Bienal de São Paulo (leia quadro).
De Duchamp, cujo segmento reúne o fantástico conjunto de 39 obras, podem ser conhecidos os famosos ready-made Bicycle wheel, feito de uma roda de bicicleta montada sobre um banco; Bottle dryer, um porta-garrafa tornado escultura; e Fountain, o mictório de porcelana exibido em posição que subverte seu caráter utilitário. Também veio L.H.O.O.Q., reprodução da Mona Lisa com bigodes e barbicha feita a lápis. Outro artista com grande quantidade de peças é Man Ray. Entre os 33 trabalhos expostos aparecem Cadeau, o famoso ferro de passar roupas com prego na base, e Obstruction, um móbile feito apenas de cabides de madeira dependurados uns nos outros. Segundo Agnaldo Farias, consultor de curadoria do Instituto e responsável pela aproximação deste com o curador americano Luis Cancel e a curadora Tamar Manor-Friedman, do Museu de Israel, o alto custo desse tipo de exposição – no caso ultrapassando sete dígitos em milhões de dólares – obriga a uma itinerância entre cidades e países próximos, semelhante a uma turnê de astros de rock, modelo que deverá se repetir cada vez mais.
Para o público latino-americano, Cancel dividiu a mostra em seis núcleos. A seleção começa com Precursores, passa por Dadá, Surrealismo, Mouvement flou – período de transição entre os dois movimentos (1920-1924) – e A biblioteca, até coroar-se no bloco Marcel Duchamp e Man Ray, dedicado aos trabalhos dos dois, amigos pessoais do colecionador. Essa proximidade explica a presença de cópias dos célebres ready-made de Duchamp, cujos originais se perderam. Na verdade, trata-se de réplicas “assistidas”, ou seja, produzidas sob a supervisão do próprio artista. Para Ricardo Ohtake, diretor do Instituto, essa antevisão da idéia de “múltiplo” dá uma dimensão da importância da mostra em termos de atualidade.
De fato, diante das obras dadaístas a sensação é de que estão ali resumidas todas as grandes tendências da arte conceitual que mais tarde tomaria conta das galerias. Embora fossem movimentos simultâneos e até interdependentes, dadaísmo e surrealismo guardavam diferenças claras. Enquanto o último, mergulhado no pensamento freudiano, pode ser considerado uma extensão do romantismo, o dadá de Duchamp, mais niilista, hoje é visto como uma extensão lógica das idéias cubistas e abstracionistas. E como tal perdurou, permanecendo vivo na arte contemporânea. Não é à toa que Ohtake promete para o próximo ano uma mostra do movimento Fluxus, que abrigou, entre outros, John Cage e Yoko Ono. Alunos aplicados dos artistas cortejados por Schwarz.