29/09/2004 - 10:00
Antes de Marieta Severo chegar em casa, o ambiente insinuava uma certa solidão. Na sala que foi o estúdio de Chico Buarque – seu marido por 30 anos e do qual está separada há dez –, fotos das três filhas, todas vivendo suas vidas, e uma de Chico sorridente, remetem ao passado. Localizada na Gávea, bairro nobre do Rio de Janeiro, a casa tem três andares. No primeiro, fica o salão de jogos. O segundo se abre para salas, jardins, varandas e piscina. No terceiro, só tem quartos. Tantos cômodos parecem um espaço grande demais para uma pessoa. Mas, quando Marieta chega, tudo muda. Aos poucos, ela vai ocupando todos os ângulos. “O quêêê??? Gambá aqui em casa? Argh!”, diz, entre caretas e ares de perplexidade ao ser informada que um de seus felinos acabou de capturar um filhote no jardim. No minuto seguinte, ela decide quais providências tomar, vê a agenda, lê um fax, orienta as empregadas, se informa sobre as fotos agendadas. A essa altura está claro que a primeira impressão não é a que fica – se Marieta estiver no centro da ação. E o que parecia melancólico se enche de vida.
Uma das maiores atrizes brasileiras, Marieta já interpretou princesa, socialite, bruxa e estrela. Mas o título de seu novo filme, com estréia nacional prevista para a sexta-feira 1º, parece talhado para ela: A dona da história. Aos 58 anos, a atriz diz que viveu a vida que escolheu, ao contrário de sua personagem, Carolina, tomada de dúvidas existenciais na meia-idade. “Gosto de onde estou hoje”, afirma. Adaptada da peça homônima – em cartaz por dois anos, com 150 mil espectadores –, a versão cinematográfica de Daniel Filho amplia a trama. No teatro, somente Marieta e Andréa Beltrão contracenavam, mostrando a mesma mulher em fases diferentes. Nas telas, há outros personagens. Casada com Luiz Cláudio (Antonio Fagundes), Carolina se pergunta como teria sido sua vida se não tivesse se dedicado ao marido e aos quatro filhos. Morando em um confortável apartamento de classe média, ela bufa antes de dormir.“Minha vida tem sido um saco!” A partir daí, dialoga com o passado e a história mostra o que poderia ser diferente caso ela tivesse feito outras escolhas. Débora Falabella interpreta sua personagem jovem. Em algumas cenas, as duas se enfrentam com rejeição ou aprovação, a exemplo da bem-humorada sequência de uma festa em que as Carolinas conversam no banheiro, enfiadas em um vestido do estilista espanhol Paco Rabanne.
Ao contrário de sua personagem, Marieta não é de “ruminar o passado”. Há meses está envolvida na realização de um sonho antigo, o de ter o próprio teatro. “Encontrei uma maluca que nem eu”, diz, referindo-se à “comadre” Andréa Beltrão, sócia na Casa de Teatro, que está sendo construída em Botafogo. Falar sobre o projeto provoca um rebuliço interno. “Chega de mesmice. Não aguento mais botar um texto debaixo do braço, esperar resposta de patrocinadores por meses, ficar à mercê das exigências do mercado. Queremos sair desse esquema comercial cansativo, repetitivo. Vamos retomar a liberdade de poder experimentar, de fazer o que a gente quiser, de não ser obrigado a sair de cartaz se o teatro não lotar.” Ela não descarta a possibilidade de trabalhar com peças de grandes bilheterias; só não quer apenas essa opção.
O teatro será em uma casa tombada. Marieta e Andréa estão usando as economias para financiar as obras. “Põe aí que estamos aceitando doações. Quem sabe alguém não doa o ar refrigerado?”, acena. “São 140 lugares porque podemos ser muito felizes falando para poucas pessoas; só 50 já estaria bom. Pequeno espaço e grande liberdade!” A Casa deverá ser inaugurada em janeiro com Sonata de outono, versão teatral do filme de Ingmar Bergman, com direção de Aderbal Freire Filho, apontado como namorado da atriz. Marieta, contudo, faz questão de manter o espaço privado fora do domínio público. Ao perceber que o assunto a seguir é sobre sua vida particular, corta rápido: “Nem precisa perguntar.”
Mesmo assim, educada, admite que a questão seja formulada. “Você está namorando o Aderbal?” Sem delongas, repete sua velha ladainha: “Não falo sobre minha vida pessoal.” E o resto é silêncio, como diria Shakespeare. “Esse pessoal que se deixa invadir, que expõe a vida particular e a casa em revistas e programas de tevê não sabe o valor da liberdade que é o próprio espaço. Eu quero poder estar num lugar com uma pessoa e não ser fotografada. É meu direito.” A reivindicação é coerente com seu histórico. Durante três décadas de vida em comum com Chico Buaque, nunca falaram sobre intimidades. A cartilha é seguida pelas filhas, Sílvia, Helena e Luísa, e ensinada à nova geração de netos – Francisco, oito anos, e Clara, cinco (de Helena), além de Lia, dois anos (de Luísa).
Mas conversar sobre trabalho motiva a atriz. Especialmente A grande família, humorístico semanal da Rede Globo que está entre os programas de maior audiência da emissora e no qual faz Nenê, uma dona-de-casa suburbana. “É uma delícia!”, diz. Mãe da Carolina jovem em A dona da história, Giulia Gam elogia o astral da colega. “A Marieta adota todo mundo. Essa é uma das suas características bacanas”, afirma. O humor é mantido até nos assuntos políticos. “Continuo acreditando no Lula. Sabíamos que o primeiro ano de governo seria difícil. Ele conseguiu não assustar os que tinham medo. Agora estamos cobrando o crescimento e a justiça social. Crescer o bolo repartindo, entende? Não é mais um depois do outro. É junto.” Receita de uma verdadeira dona da história.