29/09/2004 - 10:00
A cena evoca o Império Romano em seus dias de apogeu decadente. Diante de um Senado respeitoso, mas frio, César veste a túnica de sumo pontífice e começa a pontificar: “Cada país que busca a paz tem a obrigação de ajudar a construir este mundo. Não há isolamento a salvo das redes terroristas ou dos Estados falidos que as abrigam, ou dos regimes criminosos que possuem armas de destruição em massa”, proclama o imperador George W. Bush II ao plenário da 59ª Assembléia Geral da ONU em Nova York, na terça-feira 21. Em seguida, num texto que deixaria o orador romano Cícero desolado com tão medíocre catilinária, o imperador, digo, o presidente, continua: “Saddam Hussein ignorou, por mais de uma década, as resoluções da ONU. O Conselho de Segurança prometeu consequências graves à desobediência dele. Quando dizemos ‘consequências graves’, pelo bem da paz, deve haver consequências graves. Foi quando uma coalizão de países fez cumprir as justas demandas do mundo”, esclarece o magistrado. Passados vinte e cinco minutos, os chefes de governo e de Estado, que ouviram calados, aplaudem, polidamente, mas sem entusiasmo, a defesa da Pax Americana feita por Bush.
Diante de uma platéia cética, o presidente americano nem sequer mencionou o duro discurso que o antecedeu – proferido por ninguém menos que o secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Dias antes, numa entrevista à BBC, Annan classificara a invasão americana da Mesopotâmia – aliás, do Iraque – como “ilegal”, por ela não ter tido o aval do Conselho de Segurança da ONU. No discurso de terça-feira, ele não mediu palavras para condenar a ocupação americana diante do mundo. “Hoje, no Iraque, vemos civis massacrados a sangue frio, enquanto trabalhadores de agências internacionais humanitárias, jornalistas e outros não-combatentes são tomados como reféns e executados da maneira mais bárbara. Ao mesmo tempo, vimos a desgraça do abuso de prisioneiros iraquianos”, disse o secretário-geral, comparando a violência da resistência iraquiana à ocupação com as torturas perpetradas por americanos contra civis iraquianos. No mesmo dia, foi anunciada a morte do engenheiro civil americano Jack Hensley, 48 anos, que era refém de rebeldes iraquianos. Dias antes, o grupo terrorista Tawhid e Jihad, divulgou um vídeo em que outro engenheiro americano, Eugene Armstrong, 52 anos, aparece sendo degolado. Os dois foram sequestrados no início da semana pelo grupo, que exigia a libertação de mulheres muçulmanas detidas em prisões do Iraque. E duas mulheres italianas, voluntárias de uma ONG que cuida de crianças pobres em Bagdá, ambas chamadas Simone, ambas com 29 anos, tiveram destino idêntico ao dos americanos: na quarta-feira 22, elas foram assassinadas.
No mesmo dia em que Bush II defendia sua guerra em Nova York, o governo do Irã anunciava que tinha recomeçado a enriquecer urânio, processo adotado tanto para produzir energia quanto bombas nucleares. A temperatura subiu mais na quarta-feira 22, quando o pretor peregrino – perdão, o secretário de Estado dos EUA –, Colin Powell, disse que os EUA poderão atacar o Irã se este país não cumprir o prazo que a ONU deu a Teerã para que exponha todos os detalhes de seu programa nuclear – 25 de novembro.
Agora, Alea Jacta Est (a sorte está lançada), como diria Júlio César. Assombrados pelo 11 de setembro, incapazes de debelar a violenta resistência à ocupação no Iraque, os falcões de Washington vêem em Osama Bin Laden, Kim Jong Il e Ali Khamenei os novos bárbaros prontos a assaltar a Roma contemporânea. Resta saber até onde Washington estará disposto a ir para deter essa sensação de cerco.