O publicitário carioca Luiz Alberto Marinho, 44 anos, estava se sentindo em casa. No café da revistaria da Fnac Pinheiros, feérico hipermercado cultural de São Paulo, onde mora, costuma folhear publicações do mundo inteiro, com absoluta falta de cerimônia, enquanto a dosagem de cafeína em seu sangue se eleva. Ele se diz viciado em notícias de todas os matizes. Estar bem informado é a essência do seu trabalho. Sócio da empresa publi. BrandWorks, tem um ofício que pode parecer um tanto etéreo para a maioria das pessoas. Sua função é detectar as tendências de comportamento do consumidor para abastecer de idéias e soluções clientes de peso, como as principais redes de shoppings do País. Estuda a natureza do consumidor como o ornitólogo diante de um pássaro raro. Ainda que munido de pesquisas e estatísticas, sua principal arma é mesmo a observação e a conversa. Não se intimida em abordar clientes de shoppings e perguntar quais são seus anseios. A vocação é antiga. Até os 17 anos queria ser engenheiro, embora sem nenhuma convicção. Foi salvo por um teste vocacional que indicou um grande interesse pelo “comportamento humano”. Tornou-se publicitário. Trabalhou em grandes agências, como JW Thompson, DPZ, Almap/BBDO, foi diretor da Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) até que, em 1990, resolveu se dedicar apenas a decifrar os fenômenos do varejo. É integrante do International Council of Shopping Centers, sediado em Nova York, e faz palestras sobre o assunto pelo Brasil e pela América Latina. Seduz platéias com verve de entertainer. Também é colunista do site de negócios Blue Bus e da revista de bordo da Gol. O globetrotter do varejo lança nesta entrevista algumas teorias nem sempre agradáveis sobre os efeitos do consumo na sociedade, que, segundo ele, vive momentos de mudanças aceleradas e de profunda crise existencial. “As pessoas não sabem mais quem são e estão buscando respostas no consumo.” E dá-lhe frustrações.

ISTOÉ – Há uma idéia equivocada do que seja a classe média no País?
Luiz Alberto Marinho

Existe uma visão distorcida. Muita gente se define como classe média, mas de média não tem nada. Está, na verdade, no topo da pirâmide. A pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) sobre orçamentos familiares e os últimos dados do Censo Demográfico demonstram que 2,1% da população brasileira ganha entre cinco e dez salários mínimos, e apenas 1% ganha mais de dez salários mínimos. E o salário minímo é de R$ 260. Significa que apenas 3% da população brasileira tem como renda familiar mais de R$ 2.500 por mês. Na verdade, esse povo que ganha mais de R$ 2.500 por mês não se sente rico, e realmente não é rico, mas é elite do País, é o topo da pirâmide. Classe média, média mesmo, é aquela que está no meio da pirâmide, que a gente chama nas pesquisas de classe C. Corresponde a 33% da população brasileira e possui 29% do potencial de consumo. Essa verdadeira classe média está alijada de alguns luxos, como ir ao cinema, cursar faculdades e comprar aparelhos eletrônicos porque o dinheiro que sobra, depois que se paga alimentação, transporte e remédios, é muito pouco. Portanto, para adquirir alguns luxos, a classe média brasileira precisa recorrer ao crediário.

ISTOÉ – Se comprar é um fator importante para elevar a auto-estima como você diz nas palestras, a tal auto-estima do brasileiro anda baixa?
Luiz Alberto Marinho

As pesquisas que a gente faz mostram que empresas como as Casas Bahia, que fornecem crédito, independentemente de o cliente ter carteira assinada ou não – e olha que 60% dos empregados do Brasil estão na informalidade e, portanto, não teriam acesso a crédito formal –, são vistas por essa classe média como grandes benfeitoras. Pois possibilitam o acesso à cidadania, reconhecem o cara como cidadão brasileiro, mesmo sem carteira assinada. Ou seja, de certa forma ajudam na auto-estima dessas pessoas. O Ibope fez uma pesquisa mostrando que as marcas líderes voltaram a crescer. É óbvio. Assim que há um respiro na renda, as pessoas querem ter o direito de consumir as marcas boas.

ISTOÉ – O fator preço ainda é decisivo?
Luiz Alberto Marinho

Se o produto não tem valor agregado, o preço é determinante. Palito de fósforo é tudo igual. Então vamos comprá-lo pelo preço. Mas quando a marca confere prestígio é diferente. Se a marca faz com que você não se sinta mais um na multidão, mas sim uma pessoa bacana, sofisticada e na moda, o preço vai influir muito menos na hora de gastar. Eu fiz uma pesquisa nos supermercados de São Paulo e perguntei o seguinte aos clientes: se eles tivessem um pouquinho mais de dinheiro, o que comprariam? A resposta foi iogurte, arroz, feijão de uma marca melhor. Ou seja, mesmo na compra do básico, as pessoas têm anseios por marcas que vão agregar valor a elas. O hipermercado é o paraíso da classe média. Não é o shopping center, que é o paraíso inalcançável, onde se consome apenas com os olhos. Já no hipermercado ela pode comprar.

ISTOÉ – É o que você chama de sociedade dos sonhos?
Luiz Alberto Marinho

É meio maluco. Mesmo empobrecida, essa classe média está abastecida. E a perda do poder aquisitivo do consumidor brasileiro nos últimos dez anos, segundo estudo do Instituto Nielsen, foi de 19%. Mesmo assim, de acordo com o IBGE, a presença do aparelho de televisão nos lares brasileiros é de 87%. E as pessoas têm fogão, geladeira, só que não os modelos do último tipo. As pessoas querem a televisão, a geladeira mais moderna, trocar o móvel da sala, querem o carro novo, acesso à internet, TV a cabo. Por isso a política de embargo liderada pelos Estados Unidos contra Cuba é muito inteligente, porque priva o consumidor cubano do supérfluo. A juventude cubana anseia pelo supérfluo. O embargo é eficiente porque está cerceando o sonho dos jovens de participar de uma tribo global, através do tênis, da camiseta, da marca. É difícil abrir mão deste sonho.

ISTOÉ – O que frustra, então, é se alijar da tribo.
Luiz Alberto Marinho

É. Um pai de uma família de classe média alta matou a família e se matou na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, porque estava aparentemente quebrado. As filhas tinham por volta de 20 anos de idade. Ele não podia mais dar para a família dele acesso a carro importado, não podia mais frequentar o clube chique. Eles iam ser excluídos do mundo em que viviam, ser marginalizados. O mundo dele efetivamente ia ser destruído. Ele achou tão insuportável a ponto de dar um tiro em todo mundo e na própria cabeça. Uma amiga minha trocou a filha do colégio porque ela disse que o fato de não ter celular estava se tornando um fator de rejeição. Ela era discriminada pelas amigas porque não tinha celular. E esses luxos influenciam não só as meninas ricas, mas também as meninas dos morros do Rio de Janeiro. O sonho mais poderoso é o de encontrar um lugar na sociedade. A gente consome para ser diferente dos outros, mas igual aos nossos iguais.

ISTOÉ – O consumo também gera situações esquizofrênicas?
Luiz Alberto Marinho

É o cara que, de repente, usa um paletó superchique e acessórios superbaratos. Não há como classificá-lo. No Rio de Janeiro
havia um fenômeno engraçado. As pessoas fumavam uma marca de cigarro barata durante a semana e no fim de semana, quando saíam para badalar, apareciam com uma mais cara no bolso.

ISTOÉ – O orkut é um exemplo desta necessidade de fazer parte de um grupo?
Luiz Alberto Marinho

Para mim o orkut é microcosmo do que está acontecendo na sociedade. Primeiro, é a idéia de globalização. Todos nós fazemos parte de uma grande aldeia global, sem fronteiras geográficas, de sexo ou idade. Ao mesmo tempo, dentro do orkut há as pequenas tribos, divididas por interesse. Dentro dessas comunidades as pessoas não estão interessadas em se relacionar. Estão mais preocupadas em impor sua individualidade. É um momento de individualização extrema. Não estão preocupadas em ouvir umas às outras, mas em se exibir.

ISTOÉ – A necessidade de exibição pode ser perigosa?
Luiz Alberto Marinho

Pode descambar no desrespeito. Quem coloca o som altíssimo  e pensa “que se dane o vizinho” está preocupado apenas com seu próprio
prazer. Andar no parque com um pit bull é uma exibição de poder ameaçadora, de força. Quem anda com um pit bull não quer interagir com ninguém, até porque ninguém vai se aproximar do bicho e chamá-lo de fofinho. Vejo as pessoas cada vez menos preocupadas com valores, com princípios. Não consigo ver as pessoas orientando suas escolhas pelo mérito social das empresas, com exceção de um segmento específico de empresas como Natura e Boticário. As pessoas estão preocupadas consigo mesmas. Querem encontrar seu grupo, mas para exibir a própria individualidade.

ISTOÉ – E o fenômeno do Kidult, da nostalgia da infância entre os adultos que procuram produtos da época em que eram crianças?
Luiz Alberto Marinho

É mais do que nostalgia da infância. Estamos fartos de notícia ruim. Você chega em casa exausto, quer dar uma relaxada. A vida real está oferecendo tragédia demais. É na verdade a nostalgia de uma infância idealizada, da terra de Marlboro. Na nossa memória, a infância é um lugar feliz, gostoso, aconchegante. Estamos precisando de escapismo. Não está dando para segurar o rojão. E o que isso tem a ver com consumo? Significa que os produtos estão embutindo essa promessa de escapismo. O Omo (sabão em pó) não fala simplesmente que lava melhor. Está falando que sujar faz bem. Então fala em seus comerciais: deixa a criança se sujar. No passado, qualidade de vida tinha a ver com saúde, fitness. Hoje, tem a ver com ficar com a família, encontrar os amigos, com o ócio. Para atingir a fidelidade de um cliente a empresa precisa atingir sua alma, oferecer algo mais que um bilhete aéreo de graça. Isso é promoção, desconto, não é fidelidade. Fidelidade é quando as pessoas se relacionam com marcas. Por isso, as propagandas estão mudando. Para vender um carro, não se fala mais em desempenho, velocidade. Nas propagandas de supermercados não se fala mais só de preço. O que a gente quer comprar são sensações.

ISTOÉ – Há uma mudança na forma de olhar o consumidor da terceira idade?
Luiz Alberto Marinho

Hoje a meia-idade ocorre entre os 40 e 50 anos, enquanto antes ela era associada aos que passavam dos 30. Quem tem 60 anos não é idoso. Não dá para chamar o Caetano Veloso, o Mick Jagger, o Chico Buarque de idosos. Eu estava vendo um trabalho do IBGE que fala que a expectativa de vida do brasileiro vai subir para até mais de 70 anos em 2050. Na região Sudeste deverá ser de 83 anos. Então, esses consumidores vão ter uma importância maior. A GAP (grife de moda jovem esportiva) está criando uma marca só para mulheres com mais de 50 anos que não querem usar aquele jeans de cintura baixa que vai deixá-las ridículas, mas também não querem usar roupa de senhora que vai deixá-las parecendo a rainha da Inglaterra. O conceito de velhice está velho.

ISTOÉ – E os metrossexuais e a nova vaidade masculina?
Luiz Alberto Marinho

É um movimento sem volta. A vaidade masculina não tem a ver com pavonice. Tem a ver com querer se tratar. O homem vai entrar, ele próprio, neste mercado de consumo. Ele quer encontrar sua identidade. As lojas masculinas hoje vendem para a mulher que compra para o homem. O varejo vai ter que aprender a vender para o homem. As novas gerações já estão com um olhar diferente. Um garoto que hoje tem 15 anos vai ter, aos 30 anos, uma atitude diferente, novos hábitos.

ISTOÉ – E a criança?
Luiz Alberto Marinho

É a mais suscetível ao consumo. As meninas estão ligadas em moda, os garotos em games, os dois em celulares. Criança é suscetível ao fato de se integrar ou ser discriminada pelo que consome. Hoje os pais se sentem meio em débito com seus filhos e compensam eventuais ausências deixando-os influenciar cada vez
mais nas escolhas de compra da família, na escolha da marca de refrigerante, da marca do carro.

ISTOÉ – Ou seja, como lidar com tamanha avalanche consumista?
Luiz Alberto Marinho

São duas visões. As empresas, as marcas têm que compreender a alma do consumidor. Quanto às pessoas, estou um pouco cético. Elas estão em busca de sua identidade num mundo mutante. Elas não sabem quem são e estão buscando essas respostas no consumo. É o consumo que dá essas respostas, não as famílias, os líderes políticos. Elas estão se deixando adotar pela sociedade de consumo e adotando seus valores.