Especialistas e críticos literários decretaram a morte do realismo fantástico, o gênero que conferiu notoriedade a uma geração de escritores latino-americanos. Porém, quem tem a oportunidade de conhecer a minúscula e pacata Borá, no oeste paulista, a 520 quilômetros da capital, sai dali com a impressão de que o estilo segue mais vivo do que nunca. Uma sucessão de improváveis e insólitos acontecimentos leva a imaginação a confundir esse adorável lugarzinho com uma peça de ficção. Uma espécie de Macondo, a cidade imaginária de Cem Anos de Solidão, célebre livro do colombiano Gabriel Garcia Marquez. ISTOÉ visitou a cidadezinha para contar um pouco sobre a eleição no menor colégio eleitoral do País, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral. E daí vem o primeiro fato inusitado. O lugarejo tem mais cidadãos aptos a votar do que moradores. São 834 eleitores para 809 habitantes. O raro fenômeno tem explicação. Muitos deixaram a cidade, mas não transferiram o título. Porém, o município deve perder o motivo de sua fama. Há um projeto para a construção de um conjunto habitacional financiado pelo governo do Estado. As casas serão utilizadas por parte dos dois mil funcionários da Ibéria, uma usina de cana-de-açúcar que em breve começará a operar na zona rural da cidade. Mas, enquanto as máquinas não trabalham, o Borazinho, como os moradores locais chamam carinhosamente a cidade, respira a eleição. Como na gigante São Paulo, PSDB e PT disputam o poder voto a voto. Pelo lado tucano, o atual prefeito, Nelson Celestino Teixeira, 62 anos, no bom boraês o Nersão, busca o quarto mandato. Para enfrentá-lo, os petistas vão de Luiz Carlos Rodrigues, 34 anos, o Luiz do Açougue.

Apesar do tamanho, Borá, que leva o nome de uma abelha comum na região, está na vanguarda da política nacional. A aproximação do PT com o PFL, uma verdadeira ferroada nos radicais do partido da estrela, não daria nem um dedinho de prosa no célebre bar do seu Chico Quero-Quero, um dos principais pontos de encontro do lugar. Lá, petistas e pefelistas compõem a coligação Vida Nova. E a aliança não fica apenas na política. A candidata a vice da chapa, Iracema Vinhando, a Leninha do PFL, é casada com um dos fundadores do PT, o ex-prefeito Luiz Antônio Vinhando, o Luiz Seringueira. É mais ou menos como se Roseana Sarney e José Dirceu dividissem os lençóis. “Os grandes políticos é que se incomodam com essas coisa. No Borá, o povo vota na pessoa, não no partido”, justifica Luiz do Açougue. De açougueiro, aliás, ele só tem o nome, pois há algum tempo vendeu o estabelecimento. Curioso mesmo é como o candidato foi parar no partido do presidente Lula. Antigo filiado do PSDB, ele ingressou na legenda por influência do tio de sua mulher, Nílson Dorini, que fundou o PT local após um desentendimento com o prefeito. Ele tinha um campo de bocha e um barzinho que funcionavam num espaço cedido pela municipalidade. Em 2002, usou a área para organizar um churrasco de apoio a um candidato a deputado federal da região. O problema é que não era o político apoiado pelo seu Nerson. Na versão dos oposicionistas, o alcaide teria ficado contrariado e mandou despejar Nílson. Mas essa é apenas uma das queixas contra o prefeito.

Arranca-rabo – Nelson Celestino chegou à cidade nos anos 70. Veio de Poracatu, norte do Paraná, contratado para ser administrador de uma fazenda na região. Com o emprego, ficou popular. Logo resolveu entrar na política. Venceu a primeira eleição que disputou, em 1982. De lá para cá, ou ganha ou apóia o candidato vencedor. Gosta tanto da prefeitura que arrumou um jeito de morar numa casa ao lado dela. Os maldosos de plantão dizem que ele construiu um túnel que liga seu quarto ao gabinete. E a verba para tal obra teria sido pública. A história entrou para o imaginário popular boraense. Apesar das desconfianças, os adversários até reconhecem que ele fez bons governos. Mas, de uns tempos para cá, a relação azedou de vez. O enrosco começou quando da formação do PT no município. A partir daí, segundo os adversários, todos os que vão para a nova sigla passaram a ser perseguidos pela turma do Nersão. O prefeito tem nas mãos o controle de três programas fundamentais para a pequena população da cidade: a distribuição de leite, o fornecimento de verduras cultivadas na horta comunitária e a entrega de remédios. Na versão petista, quem abandona o barco do Nersão perde o direito aos benefícios. “Esse buchudo corta tudo de quem se filia ao PT. Ele tirou o remédio da minha mãe e das minhas irmãs. Tudo porque a gente não vota nele”, brada Cecília Macedo Amorim, 49 anos, que também é sogra do candidato petista.

O prefeito nega as acusações. Diz que qualquer um do PT tem acesso aos produtos e medicamentos oferecidos por ele. A única excluída seria Cecília, a desafeta. A rixa de ambos é antiga. Envolve acusação de um suposto sequestro, denunciado por Cecília, e uma história no mínimo surreal. Nas eleições de 2000, ela não votou em Nelson. Pouco tempo depois, a casa da mulher começou a ser apedrejada. Os cinco policiais militares da cidade montaram campanha na residência da possível vítima. Nada foi descoberto. Questionado sobre o assunto, Nelson, o suposto mandante das pedradas, soltou a boiada em cima dela. “A Maria da Pedra é uma fuxiqueira. Tudo o que fala é mentira. Ela gosta é de fazer inferno. Mas pode deixar. Vou depenar essa mundiça (imundície, no boraês) desse PT como um gavião depena uma codorna”, ameaça. Apesar da negativa, apareceu uma fita que reproduz suposto diálogo de um filiado petista com o prefeito. Na gravação, Nelson manda o adversário ir “pedir o leite e verdura para o Nílson”, referência ao fundador do PT em Borá.

Mas os problemas da autoridade não se resumem a Maria da Pedra e a batalha pela reeleição. Um de seus filhos, Ademir Celestino Teixeira, o Piu, foi o protagonista de um episódio que, guardadas as proporções boraenses, pode ser considerado o 11 de setembro da cidade. Na manhã de 16 de maio, o primeiro filho matou a tiros Valdir Ferreira, o Lapinha. O crime teve motivação passional. Valdir vivia com a ex-mulher de Ademir. Corre à boca pequena que Lapinha fazia piadinhas com Piu. Revoltado, o filho do seu Nerson dizia a amigos que iria “passar fogo” no desafeto. Ninguém levou a ameaça a sério. Até que a moda de viola da dupla Divino e Jorginho foi calada pelo estampido do disparo. O crime, testemunhado por boa parte da população, ocorreu na padaria Borá, onde a mais famosa dupla da cidade se apresenta nos finais de semana. Há 55 anos não ocorria um assassinato no município. Borá ainda nem havia se refeito da tragédia quando veio o segundo baque. Em 11 de junho, Nelson Marques de Souza, gerente do único posto bancário da cidade, usou a arma do vigia para dar fim à própria vida. As razões? Só ele poderia responder.

As tragédias e as eleições de 3 de outubro são o assunto nos bares e nas rodas de truco da praça Santo Antônio, das quais o prefeito é assíduo frequentador. Pela primeira vez em muitos anos há disputa. Quem anda pelas ruas da cidadezinha tem a impressão de que Nelson lidera. Porém, o jogo não está definido. Prova disso é que até mesmo a dupla de violeiros do pedaço desafina na hora de escolher o candidato. Na briga por uma cadeira na Câmara dos Vereadores, o arranca-rabo é parecido. São 26 candidatos: 16 na coligação de Nelson Celestino e 10 na de Luiz do Açougue. Aqui, o inusitado também versa. Luciano Antônio da Silva, 29 anos, o Fu, além de ter que enfrentar figuras como Tidão, Pastora, São Paulino, Pelé e João do Posto, ainda luta com o sangue do seu sangue. Entre os candidatos estão seu tio e adversário político, Caçaca do PT, e seus primos Neno e Irineu Dorme. Como se isso não bastasse, ele não tem nem a garantia do voto da noiva. José Aprígio Santos, 46 anos, seu futuro sogro, também está no páreo. Mas, nesse caso, parece que há acordo. “Não tem briga. Falei para a minha filha votar nele e a minha patroa em mim. Mas, como o voto é secreto, não tem como garantir, né?”, diz Aprígio, o sogrão. Aí está uma grande parte do pequeno “universo” boraense. Um lugar que não tem emissora de rádio, não tem jornal e nem mesmo casa de tolerância. Celular? Não pega. Diversão? Só no Balneário, um lago artificial construído na “periferia” da cidade. Ou no canto em tom de lamento de Enoch Selardino da Costa, o popular Marília, que com a sua voz embargada pelo álcool quebra o ritmo monocórdio do dia-a-dia. Porém, é justamente a ausência dessa tal modernidade que faz o fascínio desse pedacinho de mundo perdido na imensidão.