Ciganas e economistas costumam ganhar o pão de cada dia tentando prever o futuro. Os políticos digladiam-se na batalha municipal com um olho na vitória imediata e outro, bem gordo, no futuro: o embate maior de 2006, que vai decidir quem reinará no Planalto, no ano seguinte. Os vencedores serão conhecidos em dois domingos de outubro, o primeiro e o último, intercalados por 27 tensos dias. As projeções apontam uma forte polarização entre o PT do presidente Lula e o PSDB de Fernando Henrique Cardoso, especialmente nas grandes cidades: as 96 que têm mais de 150 mil habitantes, onde se concentram 46,4 milhões de eleitores (38,2% do total). O duelo entre petistas e tucanos acontece há dez anos, mas agora está mais bicudo do que nunca, como demonstra a agressiva batalha entre José Serra (PSDB) e Marta Suplicy (PT), em São Paulo. A federalização da disputa na capital paulistana, que já começou no primeiro turno, vai se acentuar ainda mais no segundo turno. Ministros também já entraram no campo de batalha e serão escalados para as contendas do segundo round, muitas das quais serão fundamentais para formar a rede de apoio do governo Lula e de seu projeto de reeleição. “O segundo turno da eleição municipal será o primeiro turno da disputa de 2006”, analisa o secretário-geral do PT, Sílvio Pereira.

Das urnas paulistanas – a maior cidade do País – é que sairá o resultado mais esperado. É o campo de batalha que ganhou mais visibilidade pelo fato de seus combatentes serem atores com lugares cativos na próxima disputa presidencial. Nadando de braçadas em Belo Horizonte – onde o atual prefeito petista, Fernando Pimentel, tem sua reeleição praticamente conquistada – o PT, no entanto, já sente o gosto amargo da derrota no Rio de Janeiro. O chamado “triângulo das Bermudas” – São Paulo, Rio e BH – é tido no PT como importantíssimo para o plano de reeleger Lula. Afinal, estas cidades, além de serem os maiores colégios eleitorais do País, são capitais de Estados governados por adversários dos petistas que estarão em campos opostos daqui a dois anos: os tucanos Aécio Neves (MG) e Geraldo Alckmin (SP) e Rosinha Matheus (RJ) – que, apesar de ser do PMDB, integra a ala que defende a oposição ao governo federal.

A rede – O Brasil vive sua décima terceira eleição desde o fim da ditadura militar. O PT – representado justamente pelo 13 – aposta que terá sorte. “Nossa estratégia diante do ataque tucano é manter a hegemonia nos grandes centros e ampliar nossa atuação nos pequenos municípios. Vamos conseguir isso”, aposta Sílvio Pereira, lembrando que, no pleito de 2000, o PT conquistou 187 prefeituras e passou a governar 20% da população brasileira. Hoje, o partido governa 200 cidades, já que recebeu adesões de prefeitos eleitos por outras legendas. Entrar nos grotões é a receita do PT para capilarizar seu poder de atuação em um país de proporções continentais e construir uma rede de sustentação para reeleger o presidente Lula daqui a dois anos. Estas cidades – com até 20 mil eleitores – são feudos tradicionais do PMDB, PSDB e PFL. “O PSDB vai se consolidar nos grandes centros. O que vai desempatar o embate com os tucanos será São Paulo”, opinou Pereira. O secretário-geral do PT acredita que das 50 prefeituras pequenas que governa hoje, seu partido vai passar a comandar 300. “Isso será importantíssimo para nosso projeto político porque nos grotões estão dois terços do eleitorado”, ressaltou. Na contagem  geral, Pereira calcula que seu partido conquistará no mínimo o dobro do que tem hoje entre 400 e 500 cidades.

“O PT está se implantando em lugares onde nunca teve voto, o que alavanca a campanha presidencial”, concorda o professor de história contemporânea Francisco Carlos Teixeira da Silva, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), da UFRJ. Surfando no mar de rosas que embala a provável reeleição de seu pai, o prefeito pefelista Cesar Maia, o deputado federal Rodrigo Maia (RJ), estrela emergente no PFL nacional, concorda com a tese de que as urnas paulistanas têm um papel bem mais amplo a desempenhar do que a mera escolha do próximo alcaide da cidade. Para ele, se Serra derrotar Marta “estará sinalizado que Lula poderá ter um adversário de peso em 2006”. Por outro lado, a reeleição da prefeita reforçaria a expectativa de que Lula é imbatível. Rodrigo Maia acredita que Serra na prefeitura é uma azeitona a mais na empada de Geraldo Alckmin, como candidato da aliança PSDB-PFL para presidente. “Em princípio, Alckmin é o presidenciável tucano com mais proximidade com o PFL, mas também temos aberto um canal com Aécio Neves. É claro que um novo nome pode surgir, mas os governadores de São Paulo, Minas Gerais ou Rio de Janeiro são, sempre, candidatos natos à Presidência”, diz Rodrigo.

Cesar Maia, segundo Rodrigo, não está entre os “novos nomes” que podem  disputar o Planalto em 2006. O próprio prefeito tem descartado a hipótese de repassar as chaves da cidade antes dos Jogos Pan-Americanos de 2007,  para disputar seja o governo estadual, seja a Presidência. Seus esforços com vistas à disputa presidencial têm sido concentrados em um dos vários embates internos dos partidos – que deram trégua na eleição –, mas em novembro vão voltar com muita força. O prefeito pefelista tenta fortalecer o presidente nacional de seu partido, senador Jorge Bornhausen (SC), na luta interna contra Antônio Carlos Magalhães (BA). Ao contrário de ACM, que se aproximou do PT, Bornhausen quer um perfil de oposição mais aguerrido para o PFL. De olho em 2006, a única chance de Cesar Maia seria o PFL não fazer alianças e ter candidato próprio para disputar os votos de centro-direita.

Para o cientista político Fabiano Guilherme dos Santos, o processo eleitoral deixou nítida a necessidade de os principais partidos resolverem suas disputas internas para chegarem com fôlego a 2006. “A briga é mais interna do que entre os partidos. Todos têm problemas a resolver. No PFL, se ACM perder terreno agora, a oposição mais radical dará o tom ao partido”, observa o estudioso do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Uma das brigas mais difíceis que os partidos governistas vão enfrentar dentro de suas própria tropas, prevê Fabiano, será na hipótese de tentarem impor candidaturas às seções regionais das legendas de esquerda. No Rio, as articulações atribuídas ao ministro José Dirceu (Casa Civil) para “importar” a candidatura do ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes (PPS), para disputar o governo estadual em 2006, dificilmente serão aceitas pelo PT local. E, pelo jeito, nem pelo neo-amigo PFL, que este ano deu dois apoios importantes ao PT: para Lindberg Farias, em Nova Iguaçu, e para Godofredo Pinto, em Niterói. “Não precisamos de gente de fora. É melhor que ele cuide bem do Ceará”, descarta Rodrigo Maia, cotado no PFL para disputar o governo fluminense.

Compensação – O PMDB – um dos partidos da base governista – é outro que
está com data marcada para lavar roupa suja em casa: só espera fechar as urnas, após o que o governo Lula deverá realizar uma segunda reforma ministerial. Os peemedebistas disputam com o PTB a primazia na aliança que sustenta o governo do PT e ambos os partidos sonham indicar o vice na campanha da reeleição de Lula. Se o PMDB decidir mesmo permanecer no barco de Lula, o ex-governador Anthony Garotinho, presidente do partido no Rio, deverá arrumar as malas e tomar outro rumo, já que pretende concorrer novamente ao Planalto daqui a dois anos. Em 2002, Garotinho ficou em terceiro e vai usar esse capital de 15 milhões de votos para pressionar o PMDB a ter candidato próprio. Se perder a disputa interna, o ex-governador deve tentar reorganizar o PDT.

Para o cientista político Cesar Romero Jacob, da PUC, é equivocado supervalorizar o resultado das eleições deste ano como condicionante do pleito presidencial de 2006. Uma derrota de Marta, na sua avaliação, não seria uma catástrofe para o PT. Ele lembra que, nas eleições de 1994, Fernando Henrique foi eleito presidente com 57,8% dos votos de São Paulo, porcentual que saltou para 61,9% em 1998. “Em 1996, Serra teve apenas 15% dos votos dos paulistas e nem por isso Fernando Henrique deixou de ser reeleito”, lembra. Além disso, uma eventual derrota em São Paulo pode ser bem compensada por vitória em capitais como Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre. “Se a economia continuar crescendo de forma sustentada e o quadro atual não for apenas uma bolha, as chances de reeleição de Lula serão grandes e isso nada tem a ver com Serra ou Marta. Além disso, o PT entrou nos grotões e 46% do eleitorado está em cidades de 50 mil habitantes.” O mesmo raciocínio vale para os tucanos, ou seja, “a derrota de Serra não inviabilizaria o PSDB em 2006”.

O sociólogo Hélio Jaguaribe concorda: “Se Marta Suplicy perder, ficará claro um certo esgotamento da capacidade ‘realizatória’ do PT em São Paulo, mas isso pode não afetar a sucessão presidencial se o partido for bem em outros Estados.” As eleições no Brasil, pondera Jaguaribe, devem ser compreendidas pelo peso dos candidatos e não das máquinas. O PMDB, por exemplo, há muitas eleições possui a maior máquina e não consegue fazer o presidente. Para o PT, maior do que o desafio de reeleger Lula em 2006 será, segundo Jaguaribe, manter o poder em 2010, caso o ritmo de crescimento se mantenha no patamar de apenas 4% ou 5% em relação à estagnação do ano de 2003. “A velocidade mínima que o Brasil precisa para se desenvolver seria o crescimento a partir de 6%. Se Lula for reeleito e o crescimento for mantido nos níveis atuais, perderá a capacidade de indicar seu sucessor”, vaticina Jaguaribe.

A máquina petista está cada vez mais azeitada para a mãe de todas as batalhas. O partido – que está organizado neste ano em 94,15% do território nacional – toca um audacioso projeto de informatização de seus diretórios regionais e municipais. “Vamos dar um grande salto de qualidade. Já temos hoje 676 mil filiados e deveremos chegar a um milhão até o ano que vem. A idéia é completar o projeto de informatização nacional do partido até 2006”, disse o secretário de Organização do PT, Gléber Naime. A cúpula petista prepara também a renovação de seu exército, já que muitos militantes integram hoje a imensa estrutura de poder do PT nas esferas federal, estaduais e municipais. Quanto à nova safra de vereadores que sairá das urnas no domingo, o PT vai oferecer-lhes no ano que vem cursos de quatro anos para prepará-los para sua atuação e para os debates políticos sobre o governo Lula. Afinal, não basta só convocar combatentes. É preciso treiná-los no campo de batalha.