Em meio ao baixo-astral da corrupção do mensalão, quantos não pensam que essa praga é coisa nossa e que o País não tem jeito? Mas o cientista político alemão Bruno Wilhelm Speck, há dez anos no Brasil, diz que escândalos de corrupção na seara política são doenças que atacam todos os países: pobres, em desenvolvimento e ricos. Speck lembra que na Europa pipocam escândalos. O auge foi nos anos de 1980 e 1990, quando a opinião pública européia percebeu que a corrupção não era um mal apenas de país pobre ou em desenvolvimento. Políticos de esquerda, de centro e de direita estiveram no olho do furacão de escândalos: financiamento de partidos, com dinheiro de caixa 2, com participação de empresas fantasmas no exterior, deputados “comprados” por poderosos interesses, políticos tentando tirar proveito pessoal de seus cargos. Speck diz que é uma atitude de autoflagelação achar que corrupção é um mal intrínseco à cultura brasileira. Ele afirma que há uma série de vacinas para diminuir os focos de corrupção no organismo político. Ressalta que o importante é o nível de sensibilidade da população à praga da corrupção. Ele acredita que o brasileiro está cada vez mais exigente. Speck lembra que o primeiro grande escândalo de corrupção política da Alemanha aconteceu em 1975. Uma grande empresa, Flick, obteve favores do governo e financiou partidos. Em 1999 o ex-chanceler Helmut Kohl, do Partido Democrata Cristão, admitiu que arrecadou dinheiro de caixa 2 para o seu partido. A sociedade alemã foi se tornando cada vez mais exigente a cada pancada que recebia dos políticos. Há três anos, deputados e ministros usaram, irregularmente, milhas de companhias aéreas para fins pessoais. Um escândalo que aqui seria apenas motivo de piadas resultou na renúncia de vários políticos alemães, batizados pela mídia local de “delinqüentes das milhas extras”. Ainda não chegamos a esse ponto.

ISTOÉ – Em meio a mais esse escândalo político, aumenta a sensação de que a corrupção se enraizou no Brasil, desde o seu descobrimento. Como alemão, como o sr. percebe esse sentimento que toma conta do brasileiro?
Bruno Speck

Há uma tendência de autoflagelação e resignação. É a crença de que a corrupção é intrínseca à cultura e à história brasileira. Muita gente cita a carta de Pero Vaz de Caminha quando chegou ao Brasil, na qual ele teria até pedido emprego. São coisas folclóricas. Eu não vou muito nessa não. A corrupção pode ser combatida, diminuída com medidas que dificultem a sua ocorrência, seja em licitações, seja em financiamento de partidos.

ISTOÉ – A corrupção em países em desenvolvimento como o Brasil é maior do que no chamado Primeiro Mundo?
Bruno Speck

Isso é relativo. Quanto mais a população desenvolve sensibilidade
política, mais a corrupção se torna um problema para os governos. O importante
é o nível de tolerância de uma sociedade com deslizes dos políticos. Por exemplo,
na Alemanha houve um escândalo em 2002 envolvendo políticos governistas e da oposição que usavam, ilegalmente, milhagens de companhias aéreas para viagens pessoais (esses políticos foram batizados pela mídia alemã de “delinqüentes
das milhas extras”). Alguns renunciaram e se afastaram da vida pública. Então,
um escândalo de uso inadequado de milhagem aérea que derruba políticos na Alemanha pode ser tão sério quanto um escândalo que envolve, entre outras coisas, o uso de caixa 2 no Brasil.

ISTOÉ – Na Alemanha também há muitos problemas de financiamento ilegal de partidos e políticos?
Bruno Speck

Um dos grandes escândalos foi o que envolveu o ex-chanceler Helmut Kohl em 1999 (que governou por 16 anos e foi chamado de “o pai da reunificação alemã”). Descobriu-se que ele financiava o seu Partido Democrata Cristão (CDU) com dinheiro de caixa 2 no exterior. Aí tem paralelos com o Brasil. Na Alemanha esse dinheiro do caixa 2 também foi usado para fazer política dentro do próprio partido de Kohl. Ele pôde apoiar financeiramente seus amigos nas disputas internas.

ISTOÉ – E no que deu esse escândalo na Alemanha?
Bruno Speck

O Partido Democrata Cristão teve negado seu acesso ao fundo partidário no ano seguinte. Depois houve uma reforma política que aumentou as punições dos responsáveis por caixa 2. (Isso aconteceu depois que Helmut Kohl admitiu ter recebido doações ilegais de mais de 1 milhão de euros.)

ISTOÉ – Como combater a praga da corrupção em financiamento político?
Bruno Speck

Esse é um tipo de corrupção “democrática”: ocorre em todos os lugares. Não há um remédio universal para combatê-lo. Na Alemanha, o primeiro grande caso de corrupção política aconteceu em 1975 e foi batizado de “Escândalo Flick”. Era uma poderosa indústria que teve um grande desconto no Imposto de Renda e ainda a permissão do governo para fazer uma vantajosa transação econômica. Em troca, a Flick deu dinheiro regularmente a vários partidos. Foram instaladas várias comissões parlamentares de inquérito. A investigação durou anos. O escândalo foi desvendado na década de 1980. Resultou em várias reformas do sistema de financiamento político. (No final, renunciaram o presidente do Parlamento Federal alemão, o Bundestag, e o ministro da Economia.)

ISTOÉ – Então o combate aos financiamentos ilícitos em política é globalizado?
Bruno Speck

O desafio é mundial. Uma das principais formas de os interesses privados comprometerem a classe política é pelo seu financiamento. Nenhum país vive sem escândalos que envolvem a retribuição dos financiamentos eleitorais na ação pública ou no comportamento do político nas votações. Nos países onde a lei pega mais forte, o principal problema não é o caixa 2 com a franca violação da lei. Na Europa, a fiscalização está sendo fortalecida e o político tem medo de ser descoberto. Mas os atores da corrupção são sofisticados e eles acabam achando as portas para fugir da lei e fazer doações ilegais ou não transparentes. Antigamente, na Alemanha, as empresas repassavam dinheiro para ONGs que ganhavam desconto no Imposto de Renda. E as ONGs doavam recursos para os partidos. Hoje essa triangulação não é mais permitida. O financiamento na política é como o fluxo das águas de um rio. Na nascente estão os financiadores e o fluxo vai na direção dos candidatos. Mas, sempre que se coloca uma barreira para tentar barrar esse fluxo, há um desvio. E a água vai por outro caminho. Sempre há um núcleo duro de interesses corruptos em todos os países. Por isso é preciso sempre reformar as leis.

ISTOÉ – No Brasil a corrupção que nasce dessa relação entre dinheiro e política difere dos outros países?
Bruno Speck

No caso brasileiro há distorções graves: os candidatos são financiados
por um ou por pouquíssimos doadores, que dão grandes quantias. Na eleição
para deputado federal em 2002, as empresas deram cerca de 60% do financiamento oficial. Criam-se vínculos que podem levar à corrupção. O político pode se ver
na obrigação de retribuir ao doador de várias formas: interferindo em contratos estatais, dando acesso a informações privilegiadas, e na forma como se
comporta nas votações.

ISTOÉ – Depois desse escândalo do mensalão, a eleição de 2006 vai ser pautada pelo tema da corrupção, não?
Bruno Speck

As pesquisas mostram que a característica que os eleitores consideram mais importante em um candidato é a sua integridade, antes mesmo de sua competência e de sua ideologia. Em muitos países, a corrupção é um tema muito bem explorado na campanha eleitoral. Mas é muito mal combatida por quem chega ao governo. Gostaria de ver os candidatos apresentando propostas concretas para combater ilegalidades no financiamento eleitoral; para garantir a integridade nas licitações e na contratação de servidores; para acabar com o nepotismo; para diminuir o número de cargos de confiança na máquina estatal; para aumentar a eficiência da punição aos corruptos. Na cabeça dos políticos paira a idéia de que a corrupção se resolve com a integridade ética de seus colaboradores. Mas essa receita não vale. O ambiente do poder tem forte incentivo para que as pessoas caiam em tentação e cometam ações ilegais. Corrupção não é um problema de falha individual. É um problema do sistema e o Estado deve criar vacinas para imunizar os focos de corrupção, onde quer que eles surjam. E isso é possível fazer.

ISTOÉ – A opinião pública brasileira está mais exigente com os políticos?
Bruno Speck

Está mais crítica. A capacidade dos políticos de responder às cobranças, cada vez maiores, é que é muito baixa. Esse desequilíbrio causa decepção. Os últimos escândalos brasileiros, como o de PC Farias e dos Anões do Orçamento, resultaram em reformas. Estou confiante e otimista no caso do Brasil. No final desse escândalo haverá mudanças positivas. O sistema político brasileiro vem provando que está preparado para enfrentar crises.

ISTOÉ – Para as eleições de 2006 o que é possível modificar na legislação para evitar ao máximo a corrupção?
Bruno Speck

Não há uma solução mágica que tornará perfeita a lei do financiamento eleitoral e político. Pequenas mudanças institucionais para combater os problemas são mais eficazes do que grandes reformas estruturais. Eu enfocaria a reforma política totalmente no combate ao caixa 2. Isso se faz com medidas como a imposição de um teto máximo de contribuição nas campanhas, com incentivos
para que o político procure as pequenas doações privadas e declare suas contribuições no caixa 1.

ISTOÉ – Estão surgindo propostas para tornar a campanha do ano que vem mais barata, como proibição de showmícios, de programas eleitorais de tevê sofisticados. O que o sr. acha?
Bruno Speck

Ter campanhas menos caras não melhora automaticamente a qualidade da democracia. Pode-se ter um custo menor e continuar o caixa 2 e o candidato continuar dependendo de poucos doadores. Para a consolidação da democracia o mais importante é fazer com que todos os cidadãos tenham o mesmo poder de influência no processo eleitoral. Para aperfeiçoar a democracia é preciso ter uma competição mais equilibrada entre os candidatos e políticos que não tenham rabo preso com seus doadores de campanha.

ISTOÉ – O financiamento público exclusivo, como proposto no projeto de reforma política, é um antídoto ao caixa 2?
Bruno Speck

Não. As empresas continuariam financiando os políticos e os partidos de forma ilegal ou indireta. Sou a favor de um sistema de financiamento misto, público e privado. O Brasil já tem uma forte inserção do Estado na competição política: o fundo partidário chega a R$ 120 milhões. Além disso, há o horário eleitoral gratuito nas rádios e nas tevês. Nem todo dinheiro privado em campanha é ruim: há o financiamento benéfico. As pequenas contribuições de origem privada nas campanhas eleitorais fortalecem as democracias. Criam um vínculo entre os cidadãos e os partidos. O risco está nas grandes contribuições feitas por poucos e poderosos doadores. Isso pode incentivar um sistema de favores com os políticos e aumentar a desigualdade na capacidade de influência dos cidadãos sobre o processo eleitoral.

ISTOÉ – Quais os motivos para haver tanto caixa 2?
Bruno Speck

Há interesses econômicos por parte dos financiadores e dos candidatos. Muitas empresas querem desconto no Imposto de Renda, mas não podem fazer isso doando diretamente aos partidos. Por isso, financiam diretamente os prestadores de serviços das campanhas, como gráficas, por exemplo. Essa triangulação é ilegal, mas é difícil de ser descoberta. Há casos de fornecimento de notas frias através de empresas de publicidade, como no atual escândalo brasileiro. Essas notas são usadas para descontar no IR serviços supostamente prestados, e o intermediário encaminha as doações ao candidato. O candidato também tem seus motivos econômicos. Com o dinheiro doado ilegalmente o político pode pagar cabos eleitorais, comprar votos, pagar todo o serviço sujo da campanha, enriquecer, ou favorecer seus colegas dentro de seu próprio partido. Todos os acusados dizem agora que o dinheiro recebido ilegalmente era para a campanha. Mas, se não está registrado, ninguém sabe.