14/09/2005 - 10:00
Os políticos, televangelistas e a mídia americana adotaram um chavão para explicar o desastre provocado pelo furacão Katrina. Repetem em coro que foi uma “tragédia de proporções bíblicas”. A frase busca eximir responsabilidades políticas, já que, se está na Bíblia, é “coisa de Deus”. De quebra, pretendem culpar os supostos pecados de New Orleans – uma Sodoma americana, na opinião dos fanáticos religiosos. Com tal retórica bíblica, tentam barrar um tufão com a peneira. Dispensem-se as metáforas: somente em New Orleans podem ter morrido pelo menos dez mil pessoas, segundo o prefeito Ray Nagin. Estas vão se juntar a outras milhares de vítimas nos Estados da Louisiana, Mississippi, Alabama e Flórida. Os danos materiais vão passar dos US$ 30 bilhões. Mesmo tal dinheirama não conseguirá reconstruir o município governado por Nagin, e muito menos outros locais espalhados pelo delta do rio Mississippi e Golfo do México. O dilúvio do Velho Testamento não se presta a comparações, já que o Todo-Poderoso deu instruções precisas a Noé para construir uma arca e salvar pessoas e animais. Desta vez, ninguém tomou providências cabíveis: até os bichos do zoológico novo-orleanês morreram afogados. Da fauna, os únicos que se deram bem foram os corvos – que empesteiam os céus como no filme Os pássaros, de Alfred Hitchcock – e os jacarés, que saíram das águas do Bayou (pântanos do sul dos EUA) e foram para a urbe. Aves e répteis estão comendo os cadáveres que apodrecem nas ruas submersas.
A fúria divina não consegue explicar todo o drama ocorrido no sul americano. O furacão, segundo os cientistas, tem mais a ver com o aquecimento global, para o qual a indústria local de energia contribui de modo superlativo. Já a enchente que seguiu os ventos de 240 quilômetros horários e a falha no sistema de atendimentos de emergência são culpa exclusiva das autoridades locais, estaduais e federais. Não há como fugir dessa responsabilidade. Para se ter uma pequena idéia da incompetência dos poderes públicos, basta dizer que ainda na terça-feira 6 nada mais do que três mil pessoas foram resgatadas de imóveis cercados pelas águas. O pianista Harry Connick Jr voltou à sua cidade, New Orleans, e saiu de barco verificando os estragos. Nessa jornada, se enfiou n’água até o peito e conseguiu salvar três sobreviventes que ainda esperavam este milagre depois de oito dias da aterragem de Katrina. Houve situações patéticas, como a das tripulações de dois helicópteros da Marinha que foram repreendidas por seus superiores por ter salvo cerca de 100 desabrigados da tormenta. Ao passarem perto da Universidade de New Orleans, captaram pedidos de ajuda de helicópteros da Guarda-Costeira em operações de salvamento. Os homens da Marinha rumaram para a cidade e resgataram dezenas de civis. Ao voltarem à base, foram criticados pelo comandante Michael Holdener, sob a alegação de que as ordens eram apenas para entregarem os suprimentos e voltarem à base. Um dos pilotos, o tenente Matt Udkow, foi remanejado para o projeto de criação de um canil destinado aos animais de militares que perderam casas com a enchente. Todo o esquadrão, em protesto, arrancou os distintivos com os dizeres “Para que outros possam viver”, que é o slogan do grupo de salvamento da Marinha.
Em baixa – A desumana tacanhez do comandante Holdener, porém, é apenas
nota de pé de página nesta história. Para a maioria dos americanos existe um
diabo que é culpado pelos males das operações de emergência: George W.
Bush. O presidente americano vem sofrendo barragem pesada de acusações
de incompetência. Sua popularidade, que mostrava níveis de aprovação no
medíocre patamar de 41% numa pesquisa da Rede CBS, desabaria ainda mais
no final da semana com alguns institutos falando em 73% de desaprovação.
“O presidente já enfrentava a areia movediça do Iraque e agora ainda tem de
patinar no lamaçal deixado por Katrina”, diz a pesquisadora Nancy Collman,
do Instituto de Pesquisas Morrow.
O presidente é o pai de todos os culpados pela incompetência diante da tragédia. Mas dividem com ele essa desonra desde os prefeitos das áreas atingidas até governadores e políticos dos dois partidos. O governador do Mississippi, Haley Barbour, um republicano bushista de primeira hora, demorou dois dias para autorizar as tropas da Guarda Nacional a entrar no Estado. “Sem o pedido do governador, as tropas não podem entrar”, explica o major John Kennedy, do Pentágono. O mesmo ocorreu com a democrata Kathleen Babineaux Blanco, governadora de Louisiana. O Congresso – que poucas semanas atrás havia aprovado o orçamento anual para financiamento de estradas e transportes – não atendeu aos pleitos para reforma e novas instalações de diques e bombas que protegem New Orleans. Acharam, porém, que o dinheiro do Erário seria bem gasto na construção de uma ponte no Alasca que servirá exatamente a 50 habitantes locais e custará o mesmo que a reconstrução de uma barreira no Mississippi. Dentro deste orçamento estão seis mil itens – a maior parte servindo a interesses eleitoreiros de políticos e a empresas de contribuintes de campanhas.
Portanto, embora Bush não seja o único réu neste julgamento, o problema tem
muito a ver com a percepção da culpabilidade. Não ajudou à sua imagem, por exemplo, o comentário feito por sua mãe, a ex-primeira-dama Barbara Bush,
depois da visita aos 30 mil refugiados de New Orleans que foram abrigados num velho estádio esportivo de Huston (Texas). Dando sua opinião sobre as condições
da vítimas de Katrina, ela sapecou: “A vida dessa gente melhorou muito. Eles eram desprivilegiados e não viviam em boas condições. Essa mudança os ajudou muito. O que me assusta é que muitos dizem que desejam permanecer aqui no Texas.” Com mãe como esta, quem precisa de madrasta?