14/09/2005 - 10:00
A II Conferência Mundial de Presidentes de Parlamentos, promovida pela União Inter-Parlamentar (IPU) na sede da Organização das Nações Unidas, reuniu 150 chefes de legislativos de todo o mundo e outras três centenas de deputados e senadores. Em alguns dos países de onde vieram os conferencistas, tal conluio poderia ser considerado “crime de organização de quadrilha”. Afinal, entre os participantes estavam alguns bandidos renomados e outros nem tanto. Por exemplo: o excelentíssimo Nassour Ouaidous, presidente da Assembléia Nacional do Chad – país africano que só escapou de sanções da ONU pelo genocídio oficial que se promove em seu território graças a manobras americanas.
Ouaidous apóia a política de extermínio conduzida pelo seu governo. Da lista do evento que se arrastou entre os dias 7 e 9 últimos, existem outros nomes com extensas capivaras (folhas corridas de infrações). Assim, as acusações contra o presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, Severino Cavalcanti, não provocaram sequer um erguer de sobrancelha. O deputado pernambucano chefiou a missão de colegas brasileiros no evento e discursou em nome da pátria de Rui Barbosa, do Barão do Rio Banco e de tantos luminares da política internacional.
É verdade que a passagem de Severino por Nova
 York foi tumultuada de modo superlativo. O périplo
 até o foro internacional já começou mal na                entrada.
 As autoridades da Imigração dos Estados Unidos retiveram                o senhor e senhora Cavalcanti – ele foi acompanhado da esposa.                Implicaram com os documentos de dona Amélia. Retiveram os                dois
 numa salinha onde detêm suspeitos. Como os
 visitantes não falam inglês, demorou um pouco
 para que se esclarecesse com quem aqueles funcionários estavam                falando.
“Não consumi nada” – Severino, acossado
 pelas acusações do mensalinho, desejava
 passar incógnito pela cidade e sua
 assessoria fez segredo até de onde o deputado iria se hospedar.                Ao se deparar com o correspondente de ISTOÉ no saguão                de seu hotel, Severino perguntou: “Como é que vocês                me descobriram aqui?” Foi informado que com um ou dois telefonemas                os repórteres brasileiros tinham condições                de saber até o que ele consumiu no minibar de seu quarto.                Indignado, Severino respondeu: “Mas eu não consumi                nada do minibar. Sou diabético.” Ou seja: quem dissesse                que ele fez alguma despesa no barzinho estaria incorrendo em mais                uma denúncia leviana como as que, segundo ele, o estão                denegrindo.
Sua performance na tribuna internacional também não                foi das melhores. Severino discursou com aquela oratória                famosa no Brasil, o que deve ter dado uma
 trabalheira danada aos intérpretes da ONU, que tiveram de                traduzir ao pé da letra
 um massacre de concordâncias gramaticais. Revelou, então,                ao mundo que o parlamento democrático é importante                e deve combater a corrupção. Também vergastou                o terrorismo, “que impede a paz”. O artista plástico                americano Andy
 Warhol profetizou que “no futuro, todos serão famosos                por 15 minutos”. Para o presidente da Câmara, porém,                a fama globalizada foi de apenas quatro minutos – teve menos                tempo no microfone do que, por exemplo, os representantes da Etiópia,                Mulatu Tshone, e de Botsuana, Vicent Biruta, que, entre vários                outros chefes de parlamento, falaram por cinco minutos.
Não que Severino desejasse falar muito. Cercado pela imprensa, ele repetiria o mantra de que só comentaria as acusações contra ele no Brasil. Para ISTOÉ declarou: “As denúncias de corrupção têm de ser apuradas até o fim. Doa a quem doer.” Parecia se referir a investigações de maracutaias alheias. Na insistência sobre o mensalinho, Severino foi genérico: “É preciso acabar com acusações levianas de gente que quer desmoralizar o Legislativo.” Na quinta-feira 8, disse que a confirmação dos pagamentos de propinas a ele, feita pelo empresário Sebastião Buani – dono da rede de restaurantes Fiorella –, não era válida. “Ele já havia negado que me dava dinheiro. Se confirma agora é porque está sendo pressionado por aqueles que querem me derrubar. Mas vou lutar até o fim.” Mais não disse, prometendo soltar o verbo quando pisasse em Brasília.
Fora os brasileiros, os companheiros da cúpula mundial de parlamentares ignoraram solenemente o assunto. Afinal, caso se confirmem as denúncias contra Severino, seu crime não será comparável àqueles de gente do alto clero da bandidagem. Os oradores da conferência foram apenas 33, mas bem que poderiam ser 40 – como na história de Ali Babá. Ambroise Noumazalay, presidente do Senado no Congo, é veterano político da cleptocracia de Mobuto Seko, ex-ditador quando este país ainda era chamado de Zaire. Ural Mukhamejanov, presidente da Assembléia do Cazaquistão – nação cujo nome virou sinônimo de propina –, é acusado de corrupção nas vendas de petróleo nacional.
Roch Kabore, presidente do Parlamento de Burkina Faso, foi primeiro-ministro (1994-1996) durante o período mais prolífero do contrabando de armas que sua nação fazia para alimentar os vários conflitos em vizinhos africanos, além dos negócios que promovia com diamantes roubados e proibidos de comercialização pela ONU. José de Vanecia, presidente da Câmara das Filipinas e ex-candidato à Presidência – apoiado pelo corrupto presidente Fidel Ramos –, recentemente declarou que era preciso mobilizar a indústria turística (faturamento de US$ 2 bilhões anuais) – leia-se “bordéis do turismo sexual” – para minimizar a crise monetária local. Sobre a relação entre o Parlamento filipino e a prostituição, Aurora Janete de Dios, da ONG Coalizão Contra o Tráfico de Mulheres, diz: “No dia em que acabarem com o lenocínio no país, os parlamentares – com raras exceções – vão perder suas fontes de sustento.”
Responsabilidade – Além desses, tem também o dono da casa, o secretário-geral Kofi Annan. Na quarta-feira 6, um dia antes da abertura da conferência, assumiu a responsabilidade no escândalo do programa de troca de óleo por petróleo do Iraque, no qual Saddam Hussein pagava propinas para empresas envolvidas nos negócios. Severino poderia aprender muito com Annan sobre concessões, especialmente a restaurantes. Lá mesmo no Delegates Room – comedouro chique do prédio e onde o deputado brasileiro almoçou e jantou – até 2003, todo o serviço de alimentação na sede da ONU era feito pela empresa Restaurants Associates Inc., que forneceu comida para a Casa durante 17 anos.
Naquele ano, a firma perdeu a concorrência, que passou à gigante do ramo “Aramark”, da Filadélfia. Ninguém sabe ao certo as razões da troca, já que o serviço vinha sendo cumprido direitinho pela antecessora. Há quem diga que pesou na decisão o fato de Kofi Annan ter recebido o prêmio “2001 Philadelphia Liberty”, que, além de uma medalha, dá ao homenageado a bufunfa gorda de US$ 100 mil. Na presidência da comissão de escolha de premiados estava Joseph Neubauer, que vem a ser o diretor-geral da “Aramark”. Note-se que US$ 100 mil teria sido o preço da concessão, e não mera mesada de R$ 10 mil.