13/10/2004 - 10:00
Sem sequer aportar nas telas americanas, onde estréia na sexta-feira 29, Ray, a aguardada cinebiografia do cantor Ray Charles, morto em junho passado, aos 74 anos, já divide a crítica. Acusado de burocrata pelos detratores, o diretor Taylor Hackford, de O advogado do diabo, optou por contar a vida de Ray Charles de forma linear e sem muitas ousadias. Decisão corretíssima, pensada durante os 15 anos que esperou até algum estúdio dar o sinal verde. Como um bom repórter, Hackford colheu fatos e os organizou em narrativa fluida. Mostrou saber que, quando a realidade supera os limites do fantástico, o contador de histórias não deve interferir com suas próprias fantasias. E a vida de Ray Charles, encarnado com incrível semelhança por Jamie Foxx, o mais quente ator afro-americano da atualidade, vai além da imaginação.
Menino negro, pobre, que viu o irmão caçula morrer afogado numa bacia de lavar roupas, ele ficou cego aos seis anos. Aprendeu a tocar piano de ouvido, virou órfão aos 14 anos e começou a carreira tocando numa banda country, o hino dos brancos no sul segregacionista. Tudo isso, antes de ficar viciado em heroína, ser o primeiro cantor a ter controle empresarial sobre sua criação, alcançar fama mundial, revolucionar a cultura de seu país, largar o vício e ficar multimilionário. Para alguém assim, não é preciso inventar aventuras: sua existência já tem garantias de sobra de ficar gravada de modo indelével, como as letras de uma Bíblia escrita em braile.
Não por acaso, quatro meses após sua morte, Ray Charles encabeça as paradas americanas com o disco póstumo Genius loves company, feito só de duetos com feras como Norah Jones e B. B. King, entre outros, que chega às lojas brasileiras na semana que vem junto com o DVD Ray Charles, o gênio do soul . Embora passe despercebido, Ray Charles foi um dos maiores subversivos dos Estados Unidos. Cutucou Deus com vara curta e saiu sem excomunhão ao utilizar as melodias do gospel – a música sacra das igrejas afro-americanas – como suporte para uma poesia profana. Foi assim que nasceu um de seus primeiros sucessos pelo selo Atlantic Records – I got a woman (1956) – e o que se chamaria depois soul music. A comunidade negra, a princípio, protestou e o chamou de herege. Mas o diabo é que a canção mexia com os pés e ancas das pessoas e em pouco tempo estava em primeiro lugar nas paradas. Seria apenas um dos 76 títulos que ele imprimiu nas listas de mais vendidos.
Com o consentimento do músico, o diretor Taylor Hackford mostrou o homem por inteiro, com defeitos e qualidades. O lado pioneiro não foi esquecido. “É verdade que Elvis foi quem mostrou aos brancos que era possível gostar de música negra. Mas Ray Charles foi o primeiro negro a entrar na casa dos brancos na forma de disco, e quem tornou Elvis possível”, disse a ISTOÉ Taylor Hackford. O imenso sucesso alcançado nos anos 50, escancarou as portas da indústria fonográfica para o pianista. Quando ele resolveu trocar sua gravadora original, a Atlantic, pela ABC-Paramount, exigiu controle total na escolha das canções, além da posse das matrizes de gravação. Nem Frank Sinatra tinha tantas regalias. “Charles foi o pioneiro na luta pela independência dos músicos americanos”, diz James White, o roteirista do filme. Ele foi também o primeiro astro a se posicionar sobre a questão racial, virando alvo de perseguição política disfarçada de combate às drogas. Sabia-se do seu vício em heroína, e a polícia o prendeu duas vezes por isso.
Depois da segunda prisão, o juiz aceitou sua internação numa clínica de recuperação – o Saint Francis Hospital –, comutando a pena. Ray Charles lutou contra o vício sem o auxílio de substitutos, como a metadona. “Sei exatamente como Charles se sentiu. Também fui viciado em heroína, passei pelo mesmo martírio”, disse o roteirista White. “Quando estávamos escrevendo o roteiro, tive a oportunidade de conversar várias vezes com ele sobre o vício. Concordamos que os piores momentos são aqueles gerados pelos pesadelos. Para Charles, os sonhos tinham a ver com a morte de seu irmãozinho George, que ele testemunhou em estado de choque, sem conseguir interferir”, diz White. Com uma biografia destas, não havia mesmo motivos para o diretor Taylor Hackford tentar improvisar um solo.