Nos últimos dias, João Carlos Martins tem dedicado tanta atenção aos movimentos dos guardas de trânsito e árbitros de futebol quanto às notas musicais. “Me interessa tudo o que se relaciona à expressividade das mãos e à reação que elas provocam”, explica. Essa é uma das formas originais que encontrou para se aperfeiçoar em seu novo ofício, o de maestro. Os dedos ágeis de Martins, aclamado internacionalmente como pianista, deixaram de percorrer os teclados em novembro, por conta de seu conhecido drama – a mão direita sofreu várias lesões, teve um dos músculos cortado, o que fez com que a esquerda não resistisse à sobrecarga de ensaios. Agora, como regente, seus dedos desenham melodias no ar. Afora essa mudança, ele é o mesmo artista de sempre, obcecado pela perfeição, conforme mostra o documentário A paixão segundo Martins, em cartaz. Acorda às cinco e meia para estudar, dá aulas de música ainda pela manhã e à tarde retoma os estudos, que só interrompe pouco antes da meia-noite, mesmo nos sábados e nos domingos. Volta e meia bate à porta dos amigos maestros Ira Levin e Julio Medaglia com um pacote de dúvidas. Devotado, nem lhe passou pela cabeça que a regência fosse uma espécie de consolo para o fim da trajetória de pianista. Criou a Bachiana Chamber Orchestra e estabeleceu para os músicos uma meta à sua altura: pretende que seja uma das melhores orquestras de câmara do mundo. “Vou arriscar meu império numa noite”, aposta, referindo-se à estréia, marcada para 27 de outubro na Sala São Paulo. Martins continua vivendo assim, movido pelos desafios que ele próprio se impõe.

No último ensaio antes da estréia da orquestra, ele era o próprio retrato da obstinação. Acompanhando um trecho fortíssimo da Pequena serenata, de Mozart, seus olhos se mostram esbugalhados e seu corpo treme, em êxtase. No pianissimo, os olhos fecham-se, o tronco pende como se fosse embalado por uma canção de ninar e o semblante ganha um ar enternecido. É emoção pura. Em uma interrupção, orienta os músicos usando termos importados do futebol, outra de suas paixões. “Vamos usar o elemento surpresa”, pede. E a orquestra entende perfeitamente. “Ele propõe aos músicos novas formas de interpretação dos gênios da música. Alguns se assustam, mas quando ouvem o resultado final ficam admirados”, reconhece o violinista Laércio Diniz. Ao reger, Martins dispensa os papéis impressos. Tem na cabeça mais de 400 partituras, memoriza cada instrumento. Mostra-se mais exigente quando lida com a obra de Johann Sebastian Bach, compositor que considera o maior de todos os tempos e ao qual devotou o melhor de sua carreira. No ensaio do Concerto de Brandemburgo número 4, exercitou o seu rigor. Com pouco tempo para ensaiar e insatisfeito com a interpretação, decidiu cortar o primeiro movimento no concerto feito para o Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, no Rio de Janeiro. “Ainda não estava como eu quero e o segredo de uma bela carreira muitas vezes não está no que você executa, mas no que deixa de tocar”, ensina. Aí está a principal transformação que a nova carreira lhe propõe. Acostumado a dialogar com suas próprias emoções nos tempos de solista, Martins tem agora que arrancá-las do peito para transmiti-las à orquestra. “Tenho que respeitar a individualidade dos músicos, mas naquele momento é a minha individualidade que deve prevalecer. Algumas vezes é desesperador.”

As dificuldades só aumentam a atração pela regência. “É preciso ter força de vontade para superar obstáculos que parecem intransponíveis, humildade para reconhecer obstáculos que não se pode ultrapassar e sabedoria para distinguir uma coisa da outra”, explica. Reconhece que esse último item é seu ponto fraco. “Forcei mais do que devia, me prejudiquei.” É uma menção ao excesso de ensaios que agravou o problema da mão direita e causou a doença da mão esquerda. Esses sofrimentos, e também os prêmios e aplausos recebidos mundo afora como pianista, são mencionados em tom de passado. Sua cabeça está totalmente voltada para o presente e para o brilhante futuro que imagina para sua Bachiana Chamber Orchestra. “Conto para eles a piada da turista que pergunta à velhinha americana como chegar ao Carnegie Hall. ‘Estudando’, responde a senhora.” Quando a primeira nota sol do Concerto de Brandemburgo número 3 soar na Sala São Paulo, João Carlos Martins estará percorrendo esse caminho mais uma vez.