"Homem-bomba!” O grito caiu como um petardo sobre a multidão de peregrinos xiitas em Bagdá que no final da manhã de quarta-feira 31 atravessava a ponte Aima, que liga os bairros Adhamiya (sunita) e Kadhimiya (xiita). Em desespero, os peregrinos, que se dirigiam à mesquita do imã Musa al-Kazem, em Kadhimiya, começaram a correr em debandada, atropelando-se uns aos outros. Alguns se atiraram nas águas do rio Tigre; muitos ficaram imprensados contra o muro de proteção da ponte, que acabou cedendo, jogando centenas de pessoas ao rio. “Todo mundo começou a gritar. Pulei da ponte no rio. Vi mulheres, crianças e velhos caindo atrás de mim”, relatou o sobrevivente Fadhel Ali. “Quando o muro da ponte se rompeu, muitos velhos já tinham morrido asfixiados ou pisoteados”, disse outra testemunha. No hospital Nooman, no bairro sunita de Adhamiya, dezenas de cadáveres jaziam no chão do corredor à espera de identificação. As pessoas procuravam por parentes em meio a uma balbúrdia infernal de sirenes, choros convulsivos e campainhas de telefones celulares. No final da tarde, milhares de sapatos e chinelos abandonados sobre a ponte davam a dimensão da tragédia. Segundo as autoridades, mais de mil pessoas morreram e cerca de 800 ficaram feridas. A polícia não encontrou nenhum indício de explosivos. Foi a maior tragédia num evento religioso desde 1990, quando 1.400 pessoas morreram esmagadas no Túnel al-Muaissem, em Meca, na Arábia Saudita.

Cerca de três milhões de fiéis participavam da peregrinação à mesquita do imã
Musa al-Kazem, considerado o terceiro santuário mais sagrado para o ramo
xiita do islamismo. Uma hora antes da tragédia, guerrilheiros sunitas tinham
atacado a multidão perto da mesquita com foguetes lança-granadas, provocando
a morte de sete pessoas.

Deterioradas desde a invasão americana de 2003, as relações entre xiitas – que são mais de 60% da população – e sunitas (20%) do Iraque agravaram-se consideravelmente nos últimos tempos. A mais recente divergência diz respeito ao texto da nova Constituição, que irá a plebiscito popular em outubro. Os sunitas rejeitam a Carta por considerar que sua estrutura federativa beneficia os xiitas e a minoria curda. Discriminados e oprimidos pelos sunitas durante a ditadura de Saddam Hussein (1979-2003), os xiitas agora controlam a maior parte do governo e têm sido alvo de atentados terroristas de militantes sunitas, que também atacam peregrinos e mesquitas.

Tumultos provocados por pânico em eventos religiosos de massa no Oriente Médio já causaram cerca de três mil mortes desde os anos 90. O fenômeno das multidões em pânico foi descrito pelo escritor búlgaro Elias Canetti (1905-1994) em Massa e poder: “Assim, e justamente no seu auge, a massa é obrigada a desagregar-se. A reviravolta faz-se nítida nas tendências as mais violentas dos indivíduos: todos empurram, batem e pisoteiam selvagemente ao seu redor. Mulheres, crianças e velhos não são poupados: não se diferenciam dos homens. Isso é próprio da constituição da massa, na qual todos são iguais; e mesmo não se sentindo mais como massa, o indivíduo ainda está inteiramente circundado por ela. O indivíduo deseja escapar da massa, que, como um todo, está em perigo. Como, porém, encontra-se ainda fisicamente nela, tem de combatê-la.”

E, para combater a dor, os peregrinos aumentaram seu fervor, flagelando-se
ainda com mais força, na melhor tradição de martírio do islamismo xiita.