07/09/2005 - 10:00
Os cortejos fúnebres tradicionais em New Orleans são acompanhados por bandas de jazz. Na ida ao famoso cemitério Lafayette, no Garden District, os músicos tocam os recatados hinos das igrejas protestantes. Depois de fechada a tumba, explodem as melodias alegres do dixieland-jazz. Desde segunda-feira 29, no entanto, não se leva música aos mortos. São os cadáveres que estão invadindo as ruas, num Mardi Gras (o carnaval local) macabro. Depois desse dia, com a passagem do furacão Katrina – de nível quatro na escala de cinco graus de força e com ventos que chegaram ao recorde nacional de 248 quilômetros por hora –, aqueles que estavam nas tumbas (acomodados a quase dois metros acima da terra, como é costume local) foram exumados e saíram ao encontro dos recém-falecidos, nas águas que submergiram a velha cidade. Não se sabe ainda a contabilidade das vítimas fatais. O prefeito Ray Nagin estimou, na quarta-feira 31, que a soma pode chegar à casa dos milhares. Tudo o que a aterragem de Katrina poupou num primeiro momento, as águas do lago Ponchartrain se incumbiram de arrasar. Os diques de proteção de New Orleans – a cidade fica abaixo do nível do mar – romperam em três pontos, inundando 80% da urbe. Criou-se desta forma uma Veneza à beira do Mississippi.
Vento e água fizeram o presidente Bush interromper suas férias texanas e colocar sob situação de calamidade os Estados de Louisiana, Mississippi, Alabama e Flórida. Esta já é considerada a catástrofe natural mais devastadora do país desde o terremoto que destruiu San Francisco em 1906. As estimativas iniciais dos analistas das empresas de seguro falam que os prejuízos podem passar dos US$ 25 bilhões. O próprio presidente alertou que a reconstrução da região deverá demorar vários anos. Pegue-se o exemplo de Pass Christian, cidade no Mississippi, que foi absolutamente nivelada pelos ventos e onde não há uma única construção que não esteja condenada. A maior parte dos prédios ficou reduzida a entulhos. Depois de três dias da chegada de Katrina, os mortos eram descobertos pelo odor que exalavam numa temperatura de 34ºC à sombra. Waveland, no Mississippi, também foi varrida do mapa. O importante município de Biloxi, ainda no Mississippi, não teve melhor sorte e a comunidade foi dizimada. Vagalhões de seis metros varreram Gulfport. Ali, num asilo de velhos, dez ocupantes que pensavam ter escapado dos ventos da segunda-feira acabaram afogados pelo maremoto. Estavam a seis quilômetros da praia. A cidade de Mobile, no Alabama – que gerou o nome da marca de combustíveis –, está submersa. As refinarias locais, bem como a maioria de similares à beira do Golfo do México, ficaram incapacitadas. A empresa Shell informou que duas de suas plataformas de petróleo nas águas do Golfo estavam à deriva. Na sexta-feira 2, uma série de explosões atingiu a zona costeira de New Orleans.
Conseqüências econômicas – A
região é responsável por 27% da produção de óleo e um quinto da
de gás nos Estados Unidos. Ao todo, cerca de 98% destas atividades estão paradas. O maior oleoduto que sai daquele território para abastecer os Estados do Nordeste americano foi afetado e seu fluxo interrompido. Na manhã da aterrissagem de Katrina, a segunda-feira 29, o preço do barril de óleo cru foi elevado ao patamar recorde de US$ 70. Esse preço diminuiu pela impressão de que os ventos do furacão não haviam causado tanto estrago quanto fora imaginado. Com a subida do nível das águas, no dia seguinte, o pregão também foi às alturas, numa escalada que ainda não parou. “As expectativas são de que os preços se estabilizem na casa de US$ 70 o barril”, diz Barry Keeton, analista do American Petroleum Institute. “Mas isso não garantirá preços nas bombas de gasolina ou o fornecimento de gás. Não adianta a Arábia Saudita prometer aumentar a produção ou o presidente Bush autorizar a liberação dos estoques estratégicos de petróleo dos EUA. Se não tivermos refinarias funcionando em plena capacidade, este óleo terá de ficar apenas estocado”, disse Keeton.
Refugiados – Nenhum lugar terá maior sofrimento do que a bela New Orleans. Os cerca de 30 mil refugiados que estavam no estádio do Superdome teriam de ser evacuados novamente, numa viagem de oito horas que os levaria para Houston, no Estado do Texas. Sua nova casa é outro estádio, o Astrodome, que há tempos foi aposentado sob a justificativa de ser inadequado para espetáculos esportivos. Suas acomodações, porém, têm de ser melhor do que aquelas que alojavam a população nova-orleanesa. Katrina arrancou a lona de proteção da corbertura do Superdome e a chuva ensopou quem buscou o abrigo. Depois as águas do lago inundaram a área, chegando até as bilheterias da casa. “Os sanitários pararam de funcionar. O calor, lá dentro, era de mais de 40ºC e o fedor ficou insuportável. O barulho – de gente gritando, crianças chorando e alto-falantes – nos ensurdecia”, contou a ISTOÉ a brasileira Rita de Cassia Barbosa, 65 anos, que foi uma das primeiras a mudar daquele inferno para o Astrodome. Ela ainda não sabia do paradeiro de sua filha Angela e do genro Roy Marlon, que estavam desaparecidos. “Eles tinham carro, estou rezando para que tenham fugido a tempo”, disse dona Rita.
Outro atingido foi o lendário pianista Fats Domino, 76 anos, um dos pioneiros do rock, que só vendeu menos do que Elvis Presley nos anos 50. Domino morava na área de 9th Ward, que está sob as águas. Seu agente, Al Emby, disse que ele ficou cinco dias desaparecido. Na sexta-feira 2, ele foi resgatado do telhado de sua casa por um helicóptero da Guarda Nacional. Nada menos do que 60 helicópteros passaram dias e noites no trabalho de resgate.
Além das dificuldades deste desastre, as equipes de salvamento ainda tiveram de enfrentar as balas de bandidos e saqueadores. A cidade foi tomada por turbas ignaras em busca de qualquer coisa para ser carregada. “Nem todos são ladrões. Muita gente só está à busca do que comer e de água potável ou remédios”, diz o prefeito Nagin. “Mas esta massa está se aproximando muito das zonas mais populosas e menos afetadas. É preciso parar a anarquia”, completou. A força policial, de 1.800 guardas, saiu das operações de resgate para cuidar dos saqueadores. Trinta mil membros da Guarda Nacional foram também ativados para ajudar nos trabalhos na cidade.
Enquanto isso, New Orleans ficará mergulhada numa sopa tóxica que mistura esgoto e vazamentos químicos. Pessoas e animais mortos apodrecem neste caldo. Carros submersos e tanques de postos de combustíveis soltaram gasolina, diesel e óleo na mistura e, juntamente com o gás de cozinha que sai das tubulações rompidas no subsolo, as águas nas ruas têm risco de irromper em chamas. Era possível ver fogueiras navegando naquele cenário de pesadelos. Quando tudo secar, restarão toneladas de lama contaminada. Aqueles que conheceram New Orleans são felizes: viram, talvez, a cidade americana mais original. Os que lá não estiveram não terão outra oportunidade. New Orleans nunca mais será a mesma.