Passava pouco das 19 horas da segunda-feira 29, quando o carro entrou na rua São Clemente, uma das mais nobres de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. No trecho próximo a endereços tradicionais, como a prefeitura, o Consulado de Portugal, a Pinacoteca e o Colégio Santo Inácio, o motorista fez a curva à direita. Logo em seguida ouviu o estampido. Era um tiro de fuzil, que acabara de estilhaçar o vidro do carona para se alojar no tórax da jovem Nadja Haddad, 24 anos, repórter da Rede Bandeirantes. “Fui atingida”, disse ela ao motorista da emissora, Moabe Ferreira. “Me ajuda.” A jornalista foi uma das cinco feridas na batalha travada entre policiais e traficantes do morro Dona Marta, localizado às margens da São Clemente. O confronto aconteceu no asfalto, em uma via de grande movimento, com policiais entrincheirados atrás dos muros dos prédios, enquanto famílias inteiras assistiam desprotegidas ao bangue-bangue. O novo episódio de violência urbana carioca reforça a idéia de que ficou no passado o tempo em que o poderio bélico dos traficantes se restringia aos morros. “Cada vez mais, os prédios e as ruas do Rio localizadas próximo a favelas sofrem a influência do tráfico”, avalia Helvécio Alcântara, diretor da Bolsa de Imóveis. A entidade estima que em vários bairros cariocas edificações desse tipo perderam mais de 50% de seu valor de venda.

Integrante do Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o sociólogo Inácio Cano afirma que o domínio territorial continua se dando nas favelas, mas os reflexos da violência se fazem sentir cada vez mais no asfalto. “Durante anos, as políticas de segurança foram feitas para isolar a violência nas áreas pobres”, critica ele. “Se tivéssemos tratado adequadamente do problema quando ele só acontecia nos morros, isso não estaria acontecendo.” Não é a primeira vez que o Dona Marta serve de cenário para batalhas como essa. No final da década de 80, quando os traficantes Zaca e Cabeludo disputaram o poder paralelo no local, as trocas de tiros viraram rotina – algumas vezes também atingindo a São Clemente. Também na caçada ao traficante Marcinho VP, em 2000, isso aconteceu. O inusitado dessa vez é que os marginais tenham reagido de forma tão violenta a uma simples ação policial. “A ousadia dos traficantes parece não ter limites”, lamenta a presidente da Associação de Moradores de Botafogo (AMB), Regina Chiaradia. “Os bandidos do Dona Marta foram para o asfalto e chegaram bem perto da porta do 2º Batalhão de Polícia Militar, que fica do outro lado da calçada.” Na semana anterior, um ônibus foi incendiado pelo tráfico no Cosme Velho, outro bairro nobre. O drama está democraticamente distribuído e afeta tanto moradores vizinhos de morros de Copacabana e Ipanema, na zona sul, quanto os de Vila Isabel, Tijuca ou Engenho da Rainha, na zona norte.

Ameaças – Mesmo quando a comunidade encontra formas criativas para reagir ao poder marginal, o terror permanece. Ficou nacionalmente famoso o caso de dona Vitória, a velhinha octogenária que de seu prédio em Copacabana gravou em vídeo a movimentação dos traficantes da Ladeira dos Tabajaras. Depois da divulgação das cenas de livre venda e consumo de maconha e cocaína, a polícia ocupou a área, prendeu vários traficantes e interrompeu o comércio de drogas. Nem por isso os moradores voltaram a viver em total tranqüilidade. Nos últimos dias, os vizinhos de dona Vitória passaram a receber recados dos traficantes. São ameaças de que, assim que a ocupação policial terminar, o prédio de onde foram feitas as gravações poderá ser alvo de atentados. “Não se pode querer que a comunidade combata o tráfico colocando a vida em risco. A solução é a intensificação das operações de inteligência da própria polícia”, afirma a presidente da AMB. A troca de tiros no Dona Marta teve origem na caçada aos traficantes que teriam fugido da Ladeira dos Tabajaras para o morro de Botafogo. Na quarta-feira 31, o estado de saúde da jornalista Nadja Haddad apresentou uma melhora e ela foi transferida da Unidade de Terapia Intensiva para a Unidade Intermediária do Hospital Samaritano.