07/09/2005 - 10:00
O aroma de pizza enfim dissipou-se em Brasília. Murchou na semana passada a manobra esperta do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), para salvar o pescoço de seus amigos do fio da navalha da cassação, que vai cair sobre os personagens do maior escândalo de corrupção da República. A mesada ou propina para deputados, que afundou biografias como as dos petistas José Dirceu e José Genoino e elevou ao estrelato desconhecidos como o publicitário Marcos Valério e o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, vai decepar cabeças agora no Legislativo: o relatório parcial conjunto das CPIs dos Correios e do Mensalão, apresentado na quinta-feira 1º, reconhece o esquema criminoso e aponta 18 parlamentares sujeitos à execução política, assim como a decisão unânime da Comissão de Ética da Câmara, que aprovou parecer do relator Jairo Carneiro (PFL-BA), que pede a cassação do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ). No mesmo dia, a Polícia Federal decidiu indiciar Marcos Valério, Duda Mendonça, Genoino e Delúbio, por delitos relacionados ao mensalão, como lavagem de dinheiro, evasão de divisas e crimes contra o sistema financeiro.
É um desfecho animador para quem duvidava de uns e outros. A pioneira CPI dos Correios começou sob o carimbo de “chapa branca”, presidida pelo então líder do PT no Senado, Delcídio Amaral (MS). A PF parecia destinada a um mero procedimento burocrático. O duplo libelo das CPIs e da PF, apresentado no mesmo dia, mostra que as siglas e as suspeitas não foram mais fortes do que a demanda da opinião pública e a responsabilidade dos políticos sensíveis ao clamor das ruas por ética. A suprema ironia do dia teve por palco o Itamaraty, na festa do Dia do Diplomata. Aplausos veementes ecoaram no salão quando foram chamados para receber suas medalhas o escritor Luis Fernando Verissimo, o cantor Gilberto Gil e o cineasta Nelson Pereira dos Santos. Mas um silêncio constrangedor se esparramou quando o locutor chamou o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, para receber a comenda maior, a Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco, das mãos do presidente Lula.
Por coincidência, Lula e Severino patrocinaram, cada um a seu modo, as duas
mais persistentes manobras para abafar a investigação e mitigar a punição. Apesar do discurso oficial, o Planalto tentou impedir a CPI e, depois do inevitável, procurou bloquear convocações, desqualificar testemunhas ou desfocar as investigações, através da ação da tropa de choque petista. Mais escancarado, Severino trabalhou para fazer tudo isso ao mesmo tempo, cuidando dos ingredientes para assar
uma pizza monumental, reduzindo a farelo o trabalho das CPIs. Por isso, foi simbólico que o punitivo silêncio que cobriu Lula e Severino no Itamaraty
coincidisse com as decisões das CPIs e da PF. Prova de que, apesar do
desencanto geral, nem tudo acaba em pizza.
Crise – É um bom começo, mas apenas o começo. Falta confirmar o relatório da CPI no Conselho de Ética, com uma perigosa passagem pela Mesa Diretora de Severino, antes da decisão irrecorrível do plenário, onde o voto secreto pode esmagar meros suspeitos ou absolver criminosos impenitentes. Severino, por exemplo, não desiste. Ele falou na terça-feira 30 ao jornal Folha de S.Paulo, contradizendo as provas, os depoimentos e a opinião pública. “Não acredito no mensalão”, ousou, sustentando que o caixa 2, “menos grave” que o pagamento de mesada, deveria ser punido não com cassação, mas com “uma advertência, uma censura”. A pré-pizza caiu como uma pedra no estômago da oposição em Brasília, onde Severino amanheceu, no dia seguinte, na defensiva. “Não sou leviano, irresponsável ou muito menos desequilibrado.” O líder do PFL, José Carlos Aleluia, duvidou: “V. Exa. foi extremamente infeliz na entrevista. A Câmara está na vala comum, jogada à execração pública.” O deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) tirou Severino do sério ao dizer que ele era “um desastre para o Brasil e para a imagem do País”, ameaçando: “Ou V. Exa. começa a ficar calado ou vamos iniciar um movimento para derrubá-lo!” Severino exaltou-se: “V. Exa. recolha-se à sua insignificância!”
Apesar do relatório das CPIs, os
severinos do baixo clero trabalham
para reduzir pela metade a degola
de 18 deputados. Nove são
considerados casos perdidos: seis do PT (Dirceu, Paulo Rocha, José Mentor, João Paulo Cunha, Josias Gomes e João Magno), dois do PTB (Jefferson e Romeu Queiroz) e um sem partido (Bispo Rodrigues). Dirceu resiste cobrando provas das acusações: “Quando vai começar o fuzilamento? Se você já tem convicção, é um fuzilamento político.” Já seu rival Jefferson ameaça provocar um furacão no dia de sua defesa no plenário. Um de seus colegas de partido avisou que ele vai lançar novos nomes na lama: “Vai sobrar para todo mundo.” Já o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP) anunciou: “Ele vai dar o destino dos R$ 4 milhões. Não vai assumir a pecha de que o dinheiro ficou com ele.” O resto espera se salvar no vácuo do líder do PP, José Janene, “o homem que sabe tudo e tem Severino na mão”, segundo o consenso da Câmara. “Com Janene salvo, a lista de cassação não chega a dez. Janene cassado arrastará 50 deputados com ele”, garantem os amigos do PP. Ele promete controlar, mesmo no voto secreto, a decisão de cada um dos 54 deputados da bancada pepista, a quarta maior da Câmara. Espremido entre a condenação da opinião pública e a cobrança dura de Janene, Severino viu sua pressão arterial subir perigosamente nos últimos dias. Pesquisa informal nas bancadas de outros partidos, feita por Janene, indica que ele teria 80% dos votos do plenário para salvar-se. Por isso, sua arrogância continua intacta: na terça-feira 30, na véspera da derrubada do veto que aumentou em 15% os salários dos servidores do Congresso, Janene ameaçou botar o PP contra outros vetos de Lula, que aumentariam os gastos do Orçamento não em R$ 600 milhões, mas em R$ 11 bilhões: “Dou 24 horas para liberarem as emendas de bancada.” Uma conversa de emergência com o senador Aloizio Mercadante (PT), a sós, acalmou Janene. No dia seguinte, o ministro da Articulação Política, Jaques Wagner, passou a administrar as emendas.
Na quinta-feira 1º, a crise bateu na porta ao lado de onde trabalham os dois petistas mais poderosos da República: o presidente Lula e o ministro da Fazenda. O chefe de gabinete de Palocci, Juscelino Dourado, pediu demissão um dia depois de tentar se defender na CPI dos Bingos das ligações com o advogado Rogério Buratti, que acusou o ministro, quando prefeito de Ribeirão Preto (SP), de receber um mensalão de R$ 50 mil de uma empreiteira. Na mesma CPI, o médico João Francisco Daniel envolveu o chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, na conspiração de empresários de ônibus corruptos que levaram ao assassinato em 2002 de seu irmão, Celso Daniel, prefeito de Santo André. Segundo a denúncia, Gilberto levava o dinheiro arrecadado para as mãos de José Dirceu, então presidente do PT. O médico deixou na CPI um dossiê que encontrou no apartamento do irmão morto. Dentro e fora do Congresso, parece mais difícil encontrar pizza – mas o cheiro de queimado fica cada vez mais acentuado.